É sabido que o
ordenamento jurídico corresponde ao conjunto das normas jurídicas (normas e princípios) de um
país. Por outro lado, também é de conhecimento de todos que em seu interior as
normas não estão dispostas ao acaso. Pelo contrário. O próprio ordenamento
pressupõe a disposição de suas normas de maneira organizada, sistemática, daí,
inclusive, o termo “ordenamento”, significando algo ordenado, isto é, disposto
segundo uma ordem. Portanto, as normas que compõe um ordenamento jurídico não
são dispostas a esmo, de qualquer jeito. Elas seguem uma organização, uma
disposição, de tal maneira que uma se compatibiliza com as demais formando um
todo harmonizado.
Por sua vez, é
imperioso destacar também que cada norma representa uma função no ordenamento
jurídico. Não nos referimos propriamente à função de legislar sobre determinada
matéria (direito financeiro, direito do trabalho, direito civil, etc.).
Referimo-nos ao aspecto funcional mesmo de cada norma jurídica, isto é, à sua
funcionalidade enquanto umas em relação às outras. Nesse particular, ganha especial relevância a
classificação das normas nos ordenamentos jurídicos e, dentro dessa
classificação, merece acolhida a propositura do Prof. Tércio Sampaio Ferraz
Júnior[1],
construída a partir de critérios gerais sintáticos, semânticos e pragmáticos.
Dentre esses critérios, é oportuna a classificação normativa de natureza sintática por levar em conta a
comparabilidade entre as normas, tendo em vista justamente a função que cada uma desempenha no
ordenamento jurídico.
Na classificação
normativa de natureza sintática existe aquela que classifica as normas do
ordenamento jurídico levando em consideração o aspecto da subordinação entre as normas. Nessa modalidade classificatória
distinguem-se as normas-origem e as normas-derivadas. Conforme as respectivas
nomenclaturas fazem referência, as primeiras são a base das últimas enquanto
estas decorrem das primeiras. Há uma certa dependência entre as duas categorias
de normas. Na verdade, segundo o Prof. Tércio Júnior, há uma relação
hierárquica entre ambas: as normas-origem são superiores às normas-derivadas. Em
consequência dessa hierarquização as normas-derivadas não podem contrariar sua
norma-origem, sob pena de serem consideradas inválidas.
No embate entre o
Direito Material e o Direito Processual essa forma de pensar o Direito é muito
útil.
Já é pacífico na
Doutrina o fato de o Direito Processual funcionar como instrumento do Direito Material. Em última análise, a norma
processual realiza a norma material, fazendo-a valer, na prática. Na verdade, o
que há entre ambos é uma relação de completude. A regra processual completa a
regra material formando um todo harmônico. Nessa forma de pensar o Direito, conquanto
sejam ramos distintos da Ciência Jurídica, não há como negar o caráter derivado do Direito Processual.
Gonçalves Marcus Vinícius Rios[2] já
disse uma vez que “Os esforços dedicados à conquista da
autonomia do processo civil levaram ao surgimento da ciência processual, ramo
independente do direito. Mas alguns institutos de direito processual só são
compreensíveis quando examinados à luz da relação que deve haver entre o
processo e o direito material. É o caso, por exemplo, da ação e de suas
condições. É impossível examinar a legitimidade ad causam dos litigantes,
sem referência ao direito material alegado” (grifamos).
Recorramos ao Instituto da curatela para melhor Ilustrar o que foi dito.
O Código Civil prevê o Instituto nos incisos I e II de seu art. 1.728,
reconhecendo o Direito. Por sua vez, o Código de Processo Civil dispõe sobre os
limites em que o Instituto poderá ser
usufruído e como isso se dará. É a hipótese da tutela provisória de urgência
(inciso I, parágrafo único, do art. 9º) que a norma processualística impede que
sofra a incidência da regra contida na
norma cabeça[3] do mesmo dispositivo.
Portanto, de acordo com a classificação proposta, o Direito Processual é
essencialmente uma norma-derivada enquanto o conteúdo do Direito Material é
marcado por características de uma norma-origem. É bem verdade, porém, que não
há exclusividade dessas matizes em cada um dos ramos apontados. Em outras
palavras, aqui ou ali iremos encontrar elementos no Direito Processual que são
mais de índole material que propriamente processual. O inverso também é
verdadeiro no tocante ao Direito Material. Conquanto não perca suas
características de norma-origem, vez ou outra alberga, em seu interior, distintivos
próprios do Direito Processual. Eu diria
que a questão é mais de prevalência – e não de exclusividade - de uns elementos
sobre os outros.
Cada um dos ramos mencionados comporta o que a Doutrina Jurídica nominou
de Institutos Jurídicos. Segundo Paulo Nader[4],
o Instituto Jurídico é a reunião de normas jurídicas afins, que
rege um tipo de relação social ou interesse e que se identifica pelo fim que
procura realizar. Ihering chamou-os de corpos jurídicos, para distingui-los de
simples matéria jurídica. Exemplo de Institutos Jurídicos no Direito Material
seriam o “casamento”, “a posse”, “a falência” e o “domicílio”. Já “mandado de
segurança” e “prisão provisória” são Institutos Jurídicos notadamente
encontrados nas normas processuais. Nesse sentido, também os recursos previstos
na norma processual seriam Institutos Jurídicos (apelação, agravo de instrumento, agravo
interno, embargos de declaração, recurso ordinário, recurso especial, recurso
extraordinário, agravo em recurso especial ou extraordinário e embargos de
divergência). Essa acepção está rigorosamente de acordo com a concepção
proposta por Paulo Nader uma vez que os recursos (i) reúnem normas jurídicas
afins (o capítulo que trata dos recursos nos códigos e nas leis ocupam
compartimentos específicos dentro das normas onde são regulados); (ii) regem um
tipo de relação social ou interesse (a relação se põe entre órgão julgador –
que procura aplicar a norma jurídica/reapreciar a matéria já julgada – e o recorrente) e (iii) que se identifica
pelo fim que procura realizar (rediscussão e revisão da matéria já julgada). As
“simples matérias jurídicas” referidas por Ihering dizem respeito,
essencialmente, à operacionalidade
dos Institutos Jurídicos. Elas, por assim dizer, colocam os Institutos em
movimento, realizando-os no mundo jurídico. Ocupam, portanto, a parte
periférica das relações jurídicas – conquanto não menos importante -, à maneira
de satélites que orbitam em torno de um corpo celeste. Numa palavra: as
matérias jurídicas adjetivam os institutos. É como se fossem normas-sujeito (os
institutos) e normas-predicado (as matérias).
É forçoso concluir, portanto, que há uma relação de dependência entre as
matérias e os Institutos Jurídicos. Com efeito, não é razoável pensarmos em Institutos
dissociados de suas respectivas matérias; e nem de matérias separadas de seus
institutos. Ou seja, um depende do outro. Há também aqui, como outrora apontado
na relação dos Direitos Material e Processual, uma relação de completude.
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