A Emenda Constitucional n. 109/2021 trouxe uma importante novidade
envolvendo as relações financeiras entre os poderes. Mediante inserção do §
2o. no art. 168 da CF, determinou expressamente que "O saldo financeiro decorrente dos recursos entregues
na forma do caput deste
artigo deve ser restituído ao caixa único do Tesouro do ente federativo, ou
terá seu valor deduzido das primeiras parcelas duodecimais do exercício
seguinte".
O
dispositivo se refere aos repasses de duodécimos previstos no caput do referido
art. 168: Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias,
compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos
Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria
Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na
forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º.
Na prática,
o novel dispositivo diz que, caso haja sobra de recursos de duodécimos
recebidos do Poder Executivo por parte de qualquer dos demais poderes - inclusos
ministério público, tribunais de contas e defensorias - o resíduo terá que ser
devolvido aos cofres do tesouro (federal, estadual ou municipal).
Entendo que
o novel dispositivo constitucional merece maiores reflexões à luz do que
estabelece alguns dos princípios que fundamentam a autonomia e a separação dos
poderes. A preocupação é legítima, pois, se de alguma forma tais princípios
forem mitigados, então se impõe a inconstitucionalidade do mencionado § 2o.
Vejamos.
No que diz
respeito às relações entre os Poderes, a Carta Constitucional ressalta algumas
características.
Logo em
seu art. 2º define que: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Mais adiante, em seu art. 18
pontua: "A organização
político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos
desta Constituição". O inciso III, do § 4º, do art. 60, por sua vez, reafirma
o Princípio da Separação dos Poderes como intocável por emendas à Constituição
(cláusula pétrea).
Em primeiro plano, há que se questionar qual o alcance
e o significado dos termos “independência” e “autonomia”.
Alguns autores os tomam por sinônimos, a exemplo De
Plácido e Silva. Outros, entretanto, conquanto reconheçam muitas semelhanças
entre ambos, entendem que a independência possui significado mais amplo que a
autonomia, reconhecendo que esta última integra a primeira sendo, portanto, um
de seus requisitos. Entre esses últimos está o festejado magistério de José Maurício Conti.
De fato. O termo “independência” remete à
ausência de qualquer comando ou autoridade sobre aquilo que é considerado
independente. Por outro lado, a autonomia se refere ao poder de se
autogovernar, de definir sua própria conduta. Nesse sentido, ambos os termos se
situam praticamente no mesmo ambiente. Discursões à parte, os dois termos não admitem qualquer
interferência externa no trato e manejo dos negócios de uma instituição ou de uma
pessoa.
A respeito do significado do termo “independência”
– considerado em relação ao Poder Judiciário - Clèmerson Merlin Clève assinala que ela
se manifesta por meio de duas características fundamentais: (i) a autonomia institucional
e (ii) a autonomia funcional. Para estes nossos comentários, a primeira nos interessa mais de perto.
Segundo
o mesmo autor, a autonomia institucional se revela por meio (1) do autogoverno,
(2) da autoadministração, (3) da inicialidade legislativa e (4) da
autoadministração financeira.
Em sentido
lato, a autonomia financeira pode ser concebida como a capacidade de uma
entidade ou instituição de cumprir seus compromissos por meio de seus próprios
fundos. Também pode ser vislumbrada quanto à participação dessa entidade ou
instituição na administração de seus recursos. Por outro lado, a limitação da
autonomia financeira traz prejuízos ao autogoverno e à autoadministração, uma
vez que para várias situações aquela é corolário dessas últimas. Ex: a gestão dos
benefícios distribuídos entre os colaboradores de uma instituição depende
grandemente da disponibilidade financeira. Sem esta é impossível alcançar
aquela. Em outras palavras, sem plena autonomia financeira não há como haver
plena autonomia administrativa e de governo.
Ora, fazendo-se um paralelo entre tais
considerações e o disposto no parágrafo segundo introduzido pela EC/2021, algumas importantes conclusões
podem ser extraídas.
A primeira é de que a obrigatoriedade de
devolução das sobras de recursos de duodécimos por parte dos Poderes Legislativo
e Judiciário e do Ministério Pública e Defensoria Pública, conforme exige o mencionado
dispositivo, traz prejuízos à autonomia financeira desses órgãos e poderes e, por
arrastamento, infringe princípios constitucionais irremovíveis (art. 2º c/c art.
18; e inciso III, § 4º, art. 60). Como dispor de autonomia funcional se lhes
faltam a autonomia financeira? Da forma como foi redigido, o novel dispositivo
reduziu os demais órgãos e poderes a
meras unidades gestoras do Poder Executivo!! Como se lhe tivesse de pedir as
bençãos ou integrassem sua estrutura administrativa!! Uma completa inversão de
valores!!
Nunca é demais ressaltar que a natureza jurídica
dos repasses realizados pelo Poder Executivo aos demais poderes e ao Ministério
Público e à Defensoria Pública são juridicamente diferentes dos repasses feitos
aos seus próprios órgãos (ministérios, secretarias estaduais e municipais, autarquias,
fundações públicas e empresas estatais dependentes).
A uma, porque, em relação a esses últimos, as transferências
têm por finalidade realizar programas de governos que são da titularidade do Chefe
do Poder Executivo, portanto, de sua inteira responsabilidade; o que não
acontece com a finalidade dos repasses realizados sob a forma de duodécimos. É
oportuno destacar que no que diz respeito a estes, o Tesouro (federal,
estadual, municipal) funciona como mero agente arrecadador dos recursos e não
como seu titular. Algo semelhante às receitas arrecadadas pela União e repassadas
para os estados e municípios à conta dos Fundos de Participação dos Estados e
dos Municípios que o STF reconheceu como sendo da titularidade desses entes
federativos e não da União.
O § 2º introduzido pela EC 109/2021 transmuda
completamente essa ordem de coisas. Transforma em recursos do Poder Executivo o
que a Constituição Federal determinou que fosse entregue aos órgãos e demais
poderes.
Por outro lado, da forma como está, o citado
dispositivo estimula a ineficiência no manejo dos duodécimos, infringindo o
Princípio da Eficiência previsto no caput do art. 37 da CF.
É que pela regra do dispositivo, eventual
economia de recursos realizada pelos ordenadores de despesas dos demais órgãos
e poderes resultarão em sobras de recursos que, indubitavelmente, lhe imporá a
obrigatoriedade de devolvê-los ao tesouro, como se fizessem parte da estrutura
do Poder Executivo respectivo. Ou seja,
estimula-se o gasto desenfreado ao final do exercício, justamente para se fugir
à obrigatoriedade da devolução.
Por fim, vale ressaltar o teor da ADIn 2.238-5
cuja medida cautelar foi deferida pelo STF por unanimidade, suspendendo o § 3º
do art. 9º da LC n. 101/2000, que autorizava o Poder Executivo a proceder à
limitação de empenho (segundo os critérios definidos na lei de diretrizes
orçamentárias), caso os demais poderes e o ministério público não o fizessem no
prazo estipulado. Conquanto a referida ação de inconstitucionalidade ainda não
tenha sido julgada pela Suprema Corte, a medida cautelar concedida, de uma
certa forma, deixa transparecer que os recursos financeiros dos poderes e do
ministério público estão acobertados por sua autonomia financeira e
orçamentária.
Considerando, pois, todo o exposto, o § 2º introduzido pela EC n. 109/2021 no art. 168 da CF merece ser discutido com mais amplitude, a fim de se averiguar sua natureza constitucional que, em meu breve entendimento, não se revela sólido o suficiente se analisado à luz dos Princípios da Autonomia e Separação dos Poderes.
Para nossa reflexão.
Alipio Reis Firmo Filho
Conselheiro Substituto – TCE/AM