(*) Texto publicado na minha Coluna Gestão no Fato Amazônico (www.fatoamazonico.com)
Há três estruturas na
natureza que realizam papéis fundamentais a favor da vida: a
seiva, o sangue e a água.
A seiva é responsável
pela condução dos elementos vitais no interior das árvores e das plantas. Carrega
uma preciosa carga, representada por água, nutrientes, hormônios, oxigênio e
gás carbônico. Todo o conjunto é transportado por meio de uma complexa
estrutura vascularizada, constituída por canais que, à semelhança de ductos,
comunicam entre si diferentes compartimentos no interior dos vegetais. Sem
seiva não haveria fotossíntese e, sem ela, também não existiria a produção de
oxigênio o que decretaria a morte de todo o mundo animal.
O sangue, por sua vez, é um
velho conhecido nosso. Sem ele, boa parte do reino animal inexistiria. A função
do sangue é alimentar o corpo animal, além de recolher o lixo produzido por ele
diariamente. Para nutri-lo, transporta nutrientes, oxigênio, gás carbônico,
hormônios e anticorpos de um compartimento a outro; por meio de uma extensa rede
constituída por artérias, veias e capilares. Não fosse o sangue, toda a
estrutura humana desabaria por inanição e por toxinas.
A água é também uma antiga
conhecida. Circula no interior do planeta distribuindo vida por onde passa.
Assim como o sangue e a seiva, irriga tudo o que toca. Refrigera, alimenta,
limpa e suaviza as superfícies, restaurando o solo em toda a sua plenitude.
Sem sangue, sem água e
sem seiva não há vida. O tecido humano apodrece; o solo perde seu vigor e as
folhas secam paulatinamente. A solução é amputar o membro comprometido,
descartar a folha esmaecida e renovar o solo, sob pena de todo o edifício da
vida vir a baixo. Assim o é na natureza. Assim deve ser no mundo jurídico. Eis um grande ensinamento para os operadores
do Direito.
Passo a reproduzir aqui
um trecho de um artigo meu intitulado LIMITES À APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DAS
DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (LEI Nº 13.105/2015) À LEI ORGÂNICA DO
TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO AMAZONAS, publicado em 2018 na Obra “Processos
de Controle Externo”, pela Editora Fórum: “A
lei, enquanto modalidade de expressão da Ciência Jurídica, pretende abrigar em
seu interior valores sociais capazes de manter o equilíbrio nas relações de
convivência. Imbuída desse propósito, observa o cotidiano, a procura do que há
de mais relevante nos fatos da vida. Em seu trajeto, pondera e analisa tudo o
que encontra ao derredor tentando abstrair-lhe o conteúdo e, principalmente,
seu significado. Ao final, recolhe o que
considera mais importante para a vida em sociedade, normatizando-o e atribuindo-lhe
uma consequência jurídica. Assim nasce a previsibilidade da Ciência do Direito,
condensada na norma legal, resultado da atividade legislativa. O mundo dos fatos, portanto, inspira, contínua
e indefinidamente, o mundo do Direito. Conquanto
sejam realidades distintas, ambos trabalham conjuntamente em prol do mesmo
objetivo: a vida pacífica em sociedade. O convívio social, contudo, é por demais dinâmico.
Muda constantemente. O que é hoje no presente poderá não mais existir no futuro.
Os valores sociais se alternam e se alteram com frequência. Seus significados
também. Ora se dilatam, ora se retraem. Desaparecem e reaparecem abruptamente. Por isso é tão difícil o Direito acompanhar a
tábua de valores sociais. O mandamento legal é como uma fotografia. Captura
apenas um instante do presente, congelando-o no tempo e no espaço. Daí por diante, a dinamicidade da vida
encarrega-se do resto. A ingovernabilidade do mundo dos fatos promove rupturas,
dissociando-os do que fora cristalizado no mandamento legal. Direito e
sociedade já não falarão a mesma língua. Pautar-se-ão por valores
distintos. Questões do mundo real já não
encontrarão correspondência no mundo jurídico. Nascem as lacunas do Direito. Por
mais que se afadigue, a atividade legislativa jamais poderá acompanhar a
velocidade das mudanças sociais. Uma se desloca a passos aritméticos enquanto a
outra só geometricamente avança em seu percurso. Por mais bem aparelhado que
seja o legislador diligente, ele só poderá se debruçar sobre uma matéria
legislativa de cada vez. Não mais que isso. Ou seja, as necessidades de
regulamentação serão sempre superiores à capacidade de produção legislativa. Em
razão disso, o mundo jurídico terá que conviver com suas defasagens, indefinidamente”.
Juristas
e filósofos da estatura de Herbert Lionel Adolphus Hart, Ronald Dworkin e Karl
Engisch dedicaram suas vidas refletindo sobre essa problemática. Seus
ensinamentos ajudaram a consolidar uma importante corrente jurídica doutrinária
denominada “Jurisprudência de Valores”. Para eles, sempre que o valor
cristalizado numa norma jurídica não mais encontra correspondência nos valores
sociais, é imperativo admitir-se a existência de lacunas no ordenamento jurídico;
semelhantes aos buracos na camada de ozônio que circunda o planeta Terra. Trata-se
das chamadas “lacunas axiológicas”, por envolver a ausência do elemento mais subjetivo
de uma norma jurídica: o valor.
Segundo
essa importante corrente doutrinária, todas as vezes que os operadores do
Direito se depararem com tal realidade, poderão realizar a atualização da norma,
colocando-a em sintonia com os valores sociais contemporâneos. Nesse trabalho
cognitivo, deverão animar-se pelos
anseios de justiça e paz social. Parafraseando disposição da Lei de Introdução
ao Direito Brasileiro, a aplicação da lei ao caso concreto deverá guardar
conformidade com os fins sociais da norma operada. Somente assim o magistrado
garanti-lhe a eficácia social plena.
No
fundo, a Jurisprudência de Valores está alicerçada no componente mais importante
da norma jurídica: o Valor. Ele, juntamente com o fato e a própria norma, constitui
a célula da qual se origina o tecido jurídico, gênese de todo o ordenamento
jurídico. Quando o valor se esvai, imediatamente o tecido definha. É como uma
lâmpada que vai perdendo seu brilho até se apagar completamente, deixando atrás
de si um ambiente de completa escuridão.
São como
folhas secas que merecem ser podadas pelo operador do Direito, a fim de que
outras possam florescer em seu lugar.
Se,
todavia, este insiste em conserva-la, exatamente como era antes, então a Justiça se desgarra do Direito. O certo transforma-se no errado. A paz social
se vê ameaçada e as instituições públicas caem no descrédito. Eis a precisa realidade retratada na fatídica decisão tomada
no último dia 07 de novembro por nossa Suprema Corte, decidindo a favor da
prisão de delinquentes somente depois do trânsito em julgado. Por meio dela, concedeu
sobrevida a um dispositivo
constitucional nascido há 31 anos atrás que, na atualidade, já não mais encontra
correspondência nos valores sociais contemporâneos, pois lhe falta o elemento vital: o valor.
Isso
explica a queixa, o protesto, a reclamação, a dúvida e toda a forma de repúdio
gestada no meio social. No mínimo, reclama uma profunda reflexão de todos nós,
em especial, de nossos magistrados.