quarta-feira, 8 de julho de 2020

GESTÃO CONTÁBIL: O QUE É?

O art. 70 da Constituição da República  é quem regula o controle das contas públicas no Brasil. Segundo esse dispositivo: 

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.

O alcance e a profundidade do dispositivo ficariam melhor compreendidos se lhe fosse acrescentada uma “palavrinha mágica”: gestão. Ficaria assim: “A fiscalização da gestão contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União (...)”. O acréscimo do termo à disposição constitucional não lhe imprimiria propriamente um novo significado. Serviria para lhe explicitar seu real sentido.

Gerir significa orientar pessoas debaixo de uma cultura organizacional. Cada entidade tem sua própria cultura organizacional. A cultura de uma organização é sua identidade. O fator que a diferencia de todas as demais. Grosso modo, a personalidade de um indivíduo está para ele assim como a cultura está para a organização  que a cultiva.  

A missão de uma entidade, seus valores e seus objetivos expressam, de uma maneira geral, sua cultura. Com efeito, todas as decisões por ela tomadas, assim como as motivações, avaliações e reavaliações de seu capital intelectual  têm por fim, única e exclusivamente, orienta-lo no sentido de realizar sua cultura da organização.

A gestão tem por foco as pessoas, mas se preocupa também com a sinergia entre elas e os demais recursos postos à disposição do gestor (materiais, financeiros, tecnológicos).    

Pois bem. Trata-se da configuração pretendida pelo legislador constituinte originário. A busca pela eficiência na gestão está nele representada. Do contrário, não faria sentido algum avaliar as condutas dos administradores públicos como regular, regular com ressalvas ou irregular pelos tribunais de contas.

Dentro desse contexto, a primeira conduta a ser avaliada refere-se à gestão contábil.  

É comum ouvir de muitos contadores públicos, assim como muitos escritórios contábeis que prestam serviços para o setor público - prefeituras e câmaras de pequenos municípios, principalmente – quando questionados sobre a prática de determinadas irregularidades envolvendo balanços e rubricas contábeis, o seguinte jargão: “eu não posso ser responsabilizado. Não sou gestor. Não administrei dinheiro ou manipulei bens públicos. Quem tem que responder por isso é o ordenador de despesas”.

Esse tipo de argumento não tem fundamento, ante às disposições do art.70 do Texto Constitucional.

Nele, há três naturezas de elementos geridos: dinheiros, bens e valores públicos.  A responsabilidade do contador público (ou daqueles que prestam serviços de contabilidade para os organismos públicos) funda-se no último desses elementos, qual seja, os valores públicos.

Numa acepção bem ampla, os valores públicos compreendem qualquer elemento de gestão não representados propriamente por dinheiros ou bens. Nessa categoria estão, p. exemplo, os títulos públicos, emitidos para captar recursos no mercado privado e/ou servir de instrumento de política monetária, a fim de debelar surtos inflacionários. Contam-se, ainda, qualquer papel ou nota que incorporam e representam valores públicos, como  contratos e documentos comerciais. Também podem ser representados pelas cédulas e moedas estrangeiras tutelados pelos organismos públicos que, muito embora não possam servir de moeda nas transações comerciais dentro do Território Nacional – uma vez que não possuem valor comercial segundo norma do Banco Central – incorporam, na sua essência, o conceito de valores públicos. Pensemos também nos metais preciosos como o ouro e equivalentes que igualmente se enquadram nessa modalidade de objetos geridos.

Pois bem. Conforme visto, há uma infinidade de elementos geridos que podem ser classificados como valores públicos e que, por extensão, estão sujeitos à fiscalização dos tribunais de contas.

Em se tratando da gestão contábil, não é diferente. Nela, há inúmeros valores públicos  geridos pelos profissionais da contabilidade. De uma maneira geral, todos eles estão representados pelas rubricas contábeis e pelos balanços, qualquer que seja a sua forma e finalidade. De se ressaltar que referidas rubricas e balanços correspondem a representações do patrimônio público, constituído, em linhas gerais, por dinheiros e bens, isto é, são elas que representam, contabilmente falando, o teor dos dinheiros e bens públicos. Observe o quadro a seguir:




A responsabilidade na gestão contábil nasce precisamente do dever de os serviços de contabilidade representarem, FIELMENTE, o patrimônio governamental, em qualidade e em quantidade. Nesse sentido, a representação contábil do patrimônio público deve ser um espelho do conteúdo real (dinheiros + bens).

Qualquer discordância entre eles conduzirá, fatalmente, à leitura errônea do conteúdo governamental pela sociedade (cidadãos e instituições) e, consequentemente, à responsabilização cível e penal do profissional que lhe deu causa, inclusive, com a comunicação ao seu Conselho Regional para a tomada de providências no âmbito disciplinar. Essa providência, contudo, não exime a responsabilidade perante os tribunais de contas, com todas as consequências decorrentes de sua conduta faltosa (aplicação de multas, condenação solidária pela devolução de recursos, inabilitação para participar de licitações, impedimento para assumir cargos de comissão no setor público). Nessa linha de entendimento,  o Tribunal de Contas do Estado do Amazonas, por meio da Resolução/TCE nº 15/2013, equiparou aos funcionários públicos os contabilistas e as organizações contábeis que prestam serviços para os municípios amazonenses, nos seguintes termos:

Art. 19. Os contabilistas ou organizações contábeis que prestem serviço ou assessoria contábil aos entes públicos municipais serão equiparados a funcionários públicos, conforme § 1o do art. 327 do Código Penal e responsabilizados administrativa, civil e penalmente nos termos das legislações específicas e outras especiais, respeitadas as jurisdições inerentes a cada caso, pelos atos que tenham, de alguma forma, influenciado ou sido determinante para transgressão da lei ou para a concretização do dano ou prejuízo ao erário. 

 

Parágrafo único. Além das providências administrativas adotadas pelo TCE e CRC, não exclui a representação ao MPE, a fim de que se proceda ao ajuizamento da ação penal cabível, quando da prática de ato configurador de ilícito penal.

A reprimenda é bastante oportuna. Principalmente agora quando os ventos da transparência pública sopraram forte sobre o setor público nacional (Lei n. 12.527/2011 e Lei Complementar n. 131/2009). Com efeito, os signos contábeis devem estar perfeitamente sintonizados com os signos patrimoniais. Os primeiros têm que expressar, rigorosamente, o conteúdo dos últimos, sob pena de responsabilização de quem lhe deu causa, a saber, primeiramente, os responsáveis pela escrituração contábil e também os ordenadores de despesa. Mas a cadeia de responsabilidade pode ser ainda maior, vindo a alcançar todos aqueles que, direta ou indiretamente, concorreram para a má gestão dos valores públicos, representados aqui pelas rubricas e balanços governamentais.

Nesse sentido, é importante fazer remissão à Norma Brasileira de Contabilidade, NBC TSP Estrutura Conceitual, de 23 de setembro de 2016, do Conselho Federal de Contabilidade que, em seu Capítulo 3, pontua, exaustivamente, as características qualitativas que a informação contábil deve reunir. São elas: a relevância, a representação fidedigna, a compreensibilidade, a tempestividade, a comparabilidade e a verificabilidade. Vejamos, em linhas gerais, quais as características de cada uma delas.  

Relevância:  é relevante a informação quando ela puder confirmar ou predizer algo. Se reunir qualquer uma dessas características ou as duas concomitantemente, deverá ser objeto de registro contábil.   

Representação fidedigna:  é uma das qualidades mais importantes da informação contábil. Segundo ela, os registros têm que corresponder exatamente aos contornos do fenômeno econômico ou qualquer outro fato digno de ser representado pela Contabilidade. Para tanto, segundo a mesma norma, a informação deve estar completa, neutra e livre de erro material tanto quanto possível.  

Compreensibilidade:  a informação deve ser facilmente assimilada pelos usuários.

Tempestividade:  essa qualidade é particularmente invocada e reforçada pela Lei da Transparência (Lei Complementar n. 131/2009), que exige a informação EM TEMPO REAL no setor público. Não serve a informação contábil que demora a ser produzida, pois desgarra-se, no tempo, dos fenômenos que motivam seu registro. Tornam-se informações obsoletas carecendo de utilidade. Não servem para a tomada de decisão ou qualquer outra forma de uso que os usuários possam dela extrair.

Comparabilidade:  a informação contábil deve ser produzida de tal forma que possa ser comparada com outras. Para tanto, é primordial a adoção de padrões que possam acomodar realidades distintas.

Verificabilidade:  os registros contábeis não devem ser um fim em si mesmos. Eles devem estar suportados por evidências. São as evidências que conferem à informação contábil essa qualidade.

Se a informação contábil incorporar todos esses elementos, a conduta do gestor contábil estará muito próxima do esperado. Todavia, faltando-se um, alguns ou todos os elementos apontados, não haverá outra saída senão responsabilizá-lo, como, aliás, são responsabilizados todos os demais gestores (gestores orçamentários, financeiros, patrimoniais e operacionais).  Nem mais, nem menos.

Com efeito, o registro contábil do valor de dinheiros e bens públicos acima ou abaixo de seu verdadeiro valor atrai a responsabilização do gestor contábil.  Não somente dele, mas de todos quanto com ele, direta ou indiretamente, concorreram para a irregularidade na gestão. 

Não bastasse isso, também a Lei n. 4.320/64 já impunha deveres aos serviços de contabilidade na gestão dos valores públicos. 

O art. 87 já determinara ao contador que mantivesse o controle contábil dos direitos e obrigações oriundos de ajustes ou contratos em que a administração pública fosse parte. Por sua vez, o art. 88  impõe o dever de os débitos e créditos serem escriturados com individualização do devedor ou do credor e especificação da natureza, importância e data do vencimento, quando fixada.   Também o art. 89 determina que a contabilidade evidencie os fatos ligados à administração orçamentária, financeira patrimonial e industrial. Por último, o artigo 85  observa que os serviços de contabilidade deverão ser organizados de forma a permitirem o  acompanhamento da execução orçamentária, o conhecimento da composição patrimonial, a determinação dos custos dos serviços industriais, o levantamento dos balanços gerais, a análise e a interpretação dos resultados econômicos e financeiros. 

Sobre este último mandamento, entendo que o imperativo legal é dirigido tanto aos profissionais à frente da gestão contábil quanto aos próprios ordenadores de despesas. Quanto a estes últimos, são eles que, originariamente, são os responsáveis por dotarem tais serviços das condições necessárias para bem servir aos propósitos públicos. Omissões nessa conduta ou atitudes negligentes ensejam, portanto, sua responsabilização.

Além dos referidos dispositivos, todos os demais (arts.90/106) devem igualmente ser considerados quando da avaliação da gestão contábil pelos tribunais de contas. 

    

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