Alguns
tribunais de contas têm aplicado multa aos gestores pelo atraso no
encaminhamento do Relatório de Gestão Fiscal (RGF). O valor da pena corresponde a 30% (trinta por
cento) sobre os vencimentos anuais do administrador público faltoso, conforme
prevê o § 1o do art. 5º da Lei n. 10.028/2000 (Lei de Crimes
Fiscais).
O
inciso I desse mesmo artigo dispõe que tanto o prazo quanto as condições
de encaminhamento serão estabelecidos em lei, verbis:
“Art.
5º. Constitui
infração administrativa contra as leis de finanças públicas:
I – deixar
de divulgar ou de enviar ao Poder Legislativo e ao
Tribunal de Contas o relatório de gestão fiscal, nos prazos e condições estabelecidos
em lei.”
E
aqui reside o núcleo das discussões. É que inúmeros tribunais estabeleceram o
prazo de encaminhamento do referido demonstrativo por intermédio de resolução.
Nesse sentido, restariam nulas as multas aplicadas pelos tribunais de contas
por colidirem com o princípio da reserva legal, previsto nos incisos II e XXXIX
do art. 5º da Carta Magna? Respondemos: sem dúvida.
Vejamos
o que dizem esses dois dispositivos:
“II
– ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei;
(…)
XXXIX
– não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal”.
Conforme
se vê, ambos reclamam a existência de prévio ato legislativo (entenda-se lei)
tanto para obrigar ou desobrigar alguém como para tipificar/sancionar uma ação
criminosa.
O
questionamento seguinte é: a infração administrativa (entenda-se ilícito
administrativo) referida no caput do artigo 5º da Lei n. 10.028/2000 está perfeitamente
descrita? Respondemos: não. Trata-se de típica norma incompleta de natureza administrativa, equivalentes às normas penais cegas, abertas ou normas
penais em branco contidas no Direito Penal. Tanto aquelas quanto estas
possuem peculiaridades que decorrem do fato de que, muito embora sejam dotadas
de sanções certas e precisas, não descrevem suficientemente o ilícito (administrativo
ou penal) que almejam alcançar. A discriminação da ilicitude faz-se
apenas parcialmente, não totalmente. Em razão disso, tais regramentos necessitam de um ato legislativo (lei) ou
administrativo (portaria, resolução, etc.), em geral de natureza extrapenal, que
os complementem, permitindo que sejam operados no mundo jurídico. Sem esse
requisito, não há como aplicá-los ao mundo dos fatos. Eis precisamente o que os
diferencia das normas (administrativas e penais) ditas completas cujas disposições incriminadoras descrevem exatamente e
precisamente o tipo penal ou administrativo. Tais normas não dependem de nenhum
complemento para incidirem sobre o mundo real. São, portanto, normas
auto-aplicáveis.
O
sempre festejado Damásio de Jesus, discorrendo acerca do tema, apresenta a
seguinte ilustração[1]:
“(…) nos termos do art. 168-A do CP[2]
que define a apropriação indébita previdenciária, constitui delito o fato de "deixar de repassar à previdência
social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e na forma
legal" (…) Qual é o prazo? A norma não o menciona,
cumprindo buscá-lo na Lei de Custeio da Previdência Social[3]
(arts. 30, I, "b", V e 31). A sanção vem determinada[4]
ao passo que a definição legal do crime
é incompleta, condicionada a dispositivos extrapenais” (grifo nosso)
Perceba
que o exemplo dado por Damásio de Jesus é equivalente às disposições contidas
no inciso I do artigo 5º da Lei n. 10.028/2000. Tanto aqui como ali há
concorrência de típica norma incriminadora incompleta. A única diferença é sua
natureza. Uma refere-se a um ilícito administrativo enquanto a outra
corresponde a um ilícito penal. O quadro a seguir faz esse comparativo:
Norma Jurídica
incriminadora
|
Ilícito descrito
(incompleto)
|
Prazo
(norma complementar)
|
Sanção
|
Art.
168-A do Código Penal.
|
Penal: Deixar de
repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos
contribuintes, no prazo e na forma legal
|
Até
o dia 20 do mês subsequente (Lei n. 8.212/91, lei de custeio da previdência
social, arts. 30, I, “b” e V; 31).
|
Penal: Reclusão de 2 a 5
anos e multa (Art. 168-A do CP).
|
Inciso
I do art. 5º da Lei n. 10.028/2000.
|
Administrativo: deixar de divulgar ou de
enviar ao Poder Legislativo e ao Tribunal de Contas o relatório
de gestão fiscal, nos prazos e condições estabelecidos em lei.
|
Não há lei fixando o prazo[5]
|
Administrativa: 30% dos
vencimentos anuais do gestor faltoso (§ 1o do art. 5º da
Lei n. 10.028/2000).
|
Note
que, muito embora ambas as normas incriminadoras correspondam a normas em
branco, apenas uma foi complementada (a Lei n. 8.212/91 acabou por fixar o
prazo exigido pelo artigo 168-A do Código Penal, complementando-a). O mesmo não
podemos afirmar quanto ao prazo exigido no inciso I do art. 5º da Lei n.
10.028/2000. Ele permanece em aberto para algumas unidades federativas carecendo,
pois, de ser regulamentado por lei.
No
âmbito da União, a solução encontrada foi inserir em suas leis de diretrizes
orçamentárias dispositivo específico para atender à exigência da Lei de Crimes
Fiscais, verbis:
“Art.
122. Em
cumprimento ao disposto no art. 5o, inciso I, da Lei no 10.028, de 19 de
outubro de 2000, os titulares dos Poderes e órgãos referidos no art. 54 da Lei
Complementar no 101, de 2000, encaminharão ao Congresso Nacional e ao Tribunal
de Contas da União os respectivos Relatórios de Gestão Fiscal, no
prazo de 30 (trinta) dias após o final do quadrimestre” (Lei n. 12.017/2009, que dispôs sobre as
diretrizes para a elaboração e execução da lei orçamentária de 2010)
(grifamos)
Em
suma, até que o prazo de encaminhamento do Relatório de Gestão Fiscal (ao órgão
legislativo e ao tribunal de contas) seja fixado em lei, não há como aplicar a sanção
prevista na Lei n. 10.028/2000 aos administradores públicos faltosos,
correspondente à multa de 30% de seus vencimentos anuais, já que a descrição da
ilicitude apresenta-se incompleta. Por consequência, não há como ocorrer o
fenômeno da tipicidade da conduta criminosa entendida esta como a perfeita correlação entre a ação ou omissão
do agente e o tipo (penal ou administrativo) descrito na norma jurídica uma vez
que esta ressente-se de um elemento essencial: o prazo para o encaminhamento
do demonstrativo aos órgãos de controle. Qual o prazo? Não foi definido.
Também
não há como o referido prazo ser fixado por ato administrativo – resolução –
conforme vem ocorrendo em alguns tribunais de contas. A uma, porque a Lei n.
10.028/2000 é clara ao exigir a necessária e insubstituível concorrência do ato
legislativo (lei) para fechar essa lacuna. A duas porque, admitir-se o
contrário, é jogar por terra o mandamento insculpido na parte primeira do
inciso XXXIX do artigo 5º da Lei Fundamental: não há crime sem lei anterior que
a defina.
Um outro
questionamento poderia ser construído nesse sentido: alguns tribunais de contas
aplicam multa pelo atraso no encaminhamento de balancetes, informações,
demonstrações contábeis, dentre outros. Tais sanções, em muitos casos, estão
previstas em resoluções. O Tribunal de Contas do Estado do Amazonas, a título
de exemplo, prevê esse procedimento no inciso I do artigo 308 de seu regimento
interno (Resolução n. 04/2002). A dúvida é saber se a sanção imposta aos
responsáveis nesses caos não se ressentiria do mesmo vício, isto é, careceria
do calço legal correspondente. De nossa parte, entendemos que não se trata do
mesmo contexto já que, nessa hipótese, a imposição da sanção encontra-se
amparada por disposição contida em suas respectivas leis orgânicas[6] e estas ancoram-se no
inciso VIII[7]
do artigo 71 da Carta Constitucional. Portanto, para tais casos, há expressa
autorização legal para a apenação dos gestores públicos por meio de ato
administrativo (resolução).
Por
derradeiro, é de se cogitar ainda quem seria o responsável por editar a lei
fixando o prazo reclamado na Lei n. 10.028/2000, se somente a União ou cada uma
das unidades federativas. Ora, por se tratar de matéria afeta ao Direito
Financeiro, e por estar este inserido na competência legislativa concorrente da
União, dos Estados e do Distrito Federal[8], cada um desses entes
teria a responsabilidade de fixar o limite temporal para o envio do
demonstrativo em sua respectiva base territorial. A União já fez a sua parte.
Falta agora os Estados e o Distrito Federal adotarem o mesmo procedimento.
[1]
Disponível em <http://jus.com.br/revista/texto/2286>
[2]
Lei n. 9.983/2000.
[3]
Lei n. 8.212/91.
[4]
Reclusão, de 2 a 5 anos e multa.
[5]
No Estado do Amazonas.
[6]A
Lei Orgânica do Tribunal de Contas do
Estado do Amazonas (Lei n. 2.423/96) prevê o procedimento em seu artigo 52: o Tribunal de
Contas do Estado poderá aplicar aos administradores ou responsáveis, na forma
prevista nesta Lei e no Regimento Interno, as sanções previstas neste capítulo.
[7]
“Aplicar aos responsáveis, em caso
de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em
lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano
causado ao erário”
[8]
Inciso I do artigo 24.