quarta-feira, 10 de março de 2021

FACHIN, MORO E A LAVA-JATO

 (*) Texto publicado na Coluna Gestão, do autor, no Fato Amazônico (www.alipiofilho.blogspot.com)

A decisão de Fachin de anular todos os atos do então juiz Sérgio Moro que condenaram o ex-presidente Lula e que não estavam relacionados com os ilícitos da Petrobrás caiu como uma bomba no cenário político brasileiro. Principalmente por ter devolvido os direitos políticos ao ex-presidente, que agora figura como candidato nas eleições para o Planalto em 2022. Fachin entendeu que as condenações de Lula envolvendo o tríplex de Guarujá (SP), o sitio de Atibaia (SP) e o Instituto Lula envolvem outros órgãos da administração pública o que, segundo ele, esvazia a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, origem da Lava Jato. Reconheceu que caberia a competência do julgamento de todos aqueles casos à Justiça Federal do Distrito Federal à qual remeteu os autos para nova distribuição.

A primeira crítica que se põe é: por que essa reviravolta agora? Por que essa decisão não foi tomada há mais tempo? Arrisco um palpite: por causa das “provas” hackeadas do telefone celular de Deltan Dallagnol. Aqui está talvez o principal estopim do imbróglio.  Há dois anos atrás o site The Intercept Brasil divulgou uma troca de mensagens entre o ex-juiz Sérgio Moro, Dallagnol e outros procuradores. Há época o caso repercutiu no Brasil e no mundo. Lula, de posse das mensagens, engrossou o coro de que não havia imparcialidade de Moro nas condenações. A partir daí, um rio começou a se formar...e...se avolumar...

Mais recentemente, o Ministro Lewandowski autorizou o ex-presidente Lula a acessar o conteúdo das mensagens. Moro recorreu da decisão, mas a Ministra Rosa Weber a manteve. O resultado foi que as mensagens hackeadas migraram para dentro da ação de Habeas Corpus de Lula e, com ela, a discussão acerca da imparcialidade de Moro ganhou corpo e coro na Segunda Turma do STF.

De tudo o que até aqui foi dito, há ainda alguns desdobramentos que precisam ser considerados.

Primeiro, que a decisão de Fachin é monocrática. Portanto, deverá ser ainda analisada pelo Pleno do STF que poderá referendá-la ou não. A Procuradoria Geral da República já sinalizou que irá recorrer da decisão. Portanto, podemos ter desdobramentos.

Segundo, muito embora os simpatizantes e correligionários do ex-presidente Lula estejam alardeando aos quatro cantos que finalmente a justiça foi cumprida e que restou evidente a inocência de Lula, não é bem assim. É importante destacar que a decisão de Fachin não adentrou no mérito das decisões de Moro. Nenhuma vírgula foi tirada. O conjunto probatório continua lá. Em momento algum Fachin disse que as provas contra ele não são robustas o suficiente para condená-lo. A decisão de Fachin alcança tão-somente o curso processual. Não seu conteúdo. Portanto, é nesse contexto que deve ser entendida a decisão de Fachin.   

Terceiro, ao que tudo indica, a decisão de Fachin visou, originariamente, dar uma sobrevida às condenações da Lava-Jato. Não que Fachin deixasse de estar convencido das  decisões tomadas por Moro, que resultaram nas condenações de Lula. Lembrando que por diversas vezes o próprio STF referendou tais decisões, inclusive, mantendo o petista preso, como a que ocorreu em junho de 2019, por decisão da própria Segunda Turma. À época votaram mantendo a prisão de Lula a Ministra Cármen Lúcia e Celso de Mello, juntamente com Fachin. Além disso, o STJ negou vários pedidos do ex-presidente. Uma delas ocorreu em novembro/2020 na qual sua Quinta Turma rejeitou um recurso por ele interposto no caso do triplex de Guarujá (SP). Ou seja, a coisa já estava sedimentada, mas veio a reviravolta.

Por meio de sua decisão, Fachin ofereceu uma nova oportunidade de as decisões de Moro serem referendadas por um outro Foro. Repito, não porque Fachin duvidasse das posições de Moro, mas mais como estratégia processual, ante à ameaça que começou a se formar no contexto das “provas” hackeadas. Com efeito, a redistribuição processual ao Foro do Distrito Federal calaria a tese de suspeição contra Moro. Essa conclusão parece estar reforçado pela atitude de Fachin no julgamento iniciado ontem pela Segunda Turma do STF, em que se debatia o prosseguimento ou não do julgamento pela Turma da imparcialidade de Moro nos processos da Lava-Jato. A tese de Fachin pelo não prosseguimento recorreu justamente a sua decisão tomada no dia anterior que anulou os atos do ex-juiz Sérgio Moro relacionados  ao tríplex de Guarujá (SP), o sitio de Atibaia (SP) e o Instituto Lula. Fachin sustentou a perda do objeto, mas foi vencido pelos demais integrantes da Turma.

Discussões à parte, evidentemente que o novo juiz poderá manter ou não o que Moro fez. Além disso, há também o risco de prescrição dos ilícitos praticados pelo ex-presidente o que o liberaria, em definitivo, para uma nova carreira política.

Outro ponto que merece reflexão está relacionado à legitimidade das “provas” hackeadas. Afinal de contas, elas realmente podem funcionar a favor do ex-presidente? Aqui, duas verdades se contrapõem: uma formal e outra material.

Pela verdade formal, a meu sentir, as mensagens hackeadas não poderiam servir de parâmetros para decisões judiciais. O primeiro argumento nesse sentido encontra lastro no disposto no inciso LVI, do art. 5º, da Carga Magna: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Por provas ilícitas, entenda-se, aquelas colhidas mediante infrações legais/constitucionais. Uma das mais comuns são as provas obtidas sem autorização judicial. Há pacífica jurisprudência nesse sentido. Citemos aqui a decisão da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça/RJ:

“Em agosto de 2017, a Polícia Rodoviária Federal abordou dois homens em um veículo que ia de Cachoeira Paulista/RJ ao Rio de Janeiro. Os homens informaram que estavam se dirigindo ao endereço de um rapaz com o qual comprariam drogas.

Os policiais, então, obtendo acesso ao WhatsApp de um dos homens abordados, sem autorização judicial, localizaram o suspeito de tráfico de drogas e marcaram um encontro entre ele e o rapaz abordado. Após isso, foi realizada uma ação da polícia contra o rapaz, tendo sido encontrados drogas e dinheiro no interior de sua residência. Após a ação da polícia, o morador da residência foi denunciado por tráfico de drogas.

Ao analisar o caso, o juízo de origem julgou a ação parcialmente procedente para condenar o denunciado pelo crime de tráfico de drogas. A defesa do rapaz, então, apelou da sentença, suscitando a nulidade das provas obtidas.

Ao analisar o caso, o desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto divergiu do relator e considerou que toda a ação policial foi derivada do acesso ilegal ao aplicativo de mensagens WhatsApp do telefone que estava na posse da testemunha abordada pelos policiais rodoviários.

Para o magistrado, é evidentemente descabida a versão de que a testemunha teria voluntariamente permitido o acesso dos policiais ao seu aparelho de celular, ainda mais que, após acessar o conteúdo, os agentes fingiram se passar pela testemunha, entraram em contato com um homem e marcaram o encontro com o acusado.

"Diante disso, a apreensão das drogas se deu tão somente em razão do acesso indevido às mensagens no aparelho celular, que provocou a ida dos policiais à residência do réu, não havendo contra ele, até então, qualquer investigação, tampouco mandado de busca e apreensão que justificasse a busca realizada em sua residência."

Segundo o desembargador, o encontro entre a testemunha e o acusado jamais teria ocorrido sem a troca de mensagens forjada e manipulada pelos policiais rodoviários” (https://www.migalhas.com.br/quentes/317121/sao-nulas-provas-obtidas-no-whatsapp-por-policiais-sem-autorizacao-judicial)

 

Ou seja, a verdade formal (ausência de autorização judicial para coleta de provas) se sobrepôs à verdade material – drogas e dinheiro encontrados na residência do acusado. A referida Câmara Criminal fundamentou sua decisão por infração ao inciso XII, art. 5º, do Texto Constitucional: é inviolável o sigilo (...) das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Fundamentou ainda no disposto no art. 1º da Lei n. 9.296/1996, que regulamentou aquele dispositivo constitucional: a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.

Ou seja, aplicando-se esse linha de raciocínio às mensagens hackeadas, não haveria como recorrer a elas para sustentar  decisões judiciais ou impulsos processuais. A forma processual não foi observada, qual seja, a prévia autorização judicial para obtê-las. Ademais, restaria também infringido o disposto no art. 10 da referida Lei, uma vez que a coleta de informações telefônicas sem autorização judicial constitui crime: constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.  

Portanto, a fatídica decisão da Segunda Câmara do STF, em continuar com o julgamento da imparcialidade de Moro, incorre em flagrante e explícita ilegalidade, pois recorre a uma tipologia penal (crime) para discutir um suposto crime cometido pelo ex-juiz. A dúvida: até que ponto a decisão é legítima? Onde estão mesmo os limites para as decisões judiciais? Vale qualquer coisa? Mesmo se amparadas em tipologias penais? Os simpatizantes do ex-presidente Lula colocam em xeque o devido processo legal, porém, também não dão às costas a ele quando pugnam pela introdução de provas colhidas ilicitamente num processo judicial???

Não me soa como razoável tudo isso. Justiça para ser boa tem que começar de casa. Respeitar seus próprios postulados e limites. Se não for assim, é qualquer coisa, menos justiça.   

A conclusão da Câmara Criminal do TJ/RJ se ampara em jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA. LEGALIDADE. PERDA DO OBJETO. LIBERDADE PROVISÓRIA CONCEDIDA. NULIDADE PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA PERSECUÇÃO PENAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PROVAS OBTIDAS POR MEIO DE TELEFONE CELULAR APREENDIDO. MENSAGENS DE WHATSAPP. INEXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. NULIDADE CONSTATADA. PROVAS INADMISSÍVEIS. DESENTRANHAMENTO DOS AUTOS. WRIT PARCIALMENTE PREJUDICADO E, NO MAIS, ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO APENAS EM PARTE. (...) 4. Esta Corte Superior de Justiça considera ilícita o acesso aos dados do celular e das conversas de whatsapp extraídas do aparelho celular apreendido em flagrante, quando ausente de ordem judicial para tanto, ao entendimento de que, no acesso aos dados do aparelho, se tem a devassa de dados particulares, com violação à intimidade do agente. Precedentes. No caso, a obtenção dos dados telefônicos do impetrante se deu em violação de normas constitucionais e legais, a revelar a inadmissibilidade da prova, nos termos do art. 157, caput, do Código de Processo Penal - CPP, de forma que, devem ser desentranhadas dos autos, bem como aquelas derivadas, devendo o Magistrado de origem analisar o nexo de causalidade e eventual existência de fonte independente, nos termos do art. 157, § 1º, do Código de Processo Penal. 5. Writ prejudicado em parte e, no mais, ordem concedida, de ofício, em parte, apenas para reconhecer a ilicitude da colheita de dados dos aparelhos telefônicos (conversas de whatsapp), sem autorização judicial, devendo mencionadas provas, bem como as derivadas, serem desentranhadas dos autos, competindo ao Magistrado de origem analisar o nexo de causalidade e eventual existência de fonte independente, nos termos do art. 157, § 1º, do Código de Processo Penal. (HC 450.617/MG, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 21/02/2019, DJe 06/03/2019).

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. ACESSO AOS DADOS ARMAZENADOS EM TELEFONE CELULAR (MENSAGENS DO APLICATIVO WHATSAPP) DURANTE A PRISÃO EM FLAGRANTE. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. NULIDADE DAS PROVAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. LIBERDADE PROVISÓRIA. CONCESSÃO. RECURSO PROVIDO. I - A jurisprudência deste Tribunal Superior firmou-se no sentido de ser ilícita a prova oriunda do acesso aos dados armazenados no aparelho celular, relativos a mensagens de texto, SMS, conversas por meio de aplicativos (WhatsApp), obtidos diretamente pela polícia no momento da prisão em flagrante, sem prévia autorização judicial. II - In casu, os policiais civis obtiveram acesso aos dados (mensagens do aplicativo WhatsApp) armazenados no aparelho celular do corréu, no momento da prisão em flagrante, sem autorização judicial, o que torna a prova obtida ilícita, e impõe o seu desentranhamento dos autos, bem como dos demais elementos probatórios dela diretamente derivados. III - As instâncias ordinárias fundamentaram a prisão preventiva do recorrente nos indícios de materialidade e autoria extraídos a partir das conversas encontradas no referido celular, indevidamente acessadas pelos policiais, prova evidentemente ilícita, o que impõe a concessão da liberdade provisória. Recurso ordinário provido para determinar o desentranhamento dos autos das provas obtidas por meio de acesso indevido aos dados armazenados no aparelho celular, sem autorização judicial, bem como as delas diretamente derivadas, e para conceder a liberdade provisória ao recorrente, salvo se por outro motivo estiver preso, e sem prejuízo da decretação de nova prisão preventiva, desde que fundamentada em indícios de autoria válidos. (RHC 92.009/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 10/04/2018, DJe 16/04/2018)

Em outro julgado, o Ministro Jorge Mussi da 5ª Turma do STJ, comentando a respeito, fez a seguinte abordagem:  “... Não obstante os dados armazenados em aparelhos eletrônicos, notadamente em telefones celulares, não se encontrem albergados pela proteção contida no inciso XII do artigo 5º da Lei Maior, não há dúvidas de que, consoante o disposto no inciso X do mencionado dispositivo constitucional, dizem respeito à intimidade e à vida privada do indivíduo, não se admitindo, assim, que sejam acessados ou devassados indiscriminadamente, mas apenas mediante decisão judicial fundamentada. Doutrina. Jurisprudência” (RHC 100.922/SP, julgado em 11/12/2018, DJe 01/02/2019)

Conforme se vê, aceitando as “provas” hackeadas os Ministros da Segunda Turma colidem frontalmente com remansosa jurisprudência da mais alta corte da justiça infraconstitucional do País. Também colocam por terra dois dos mais sensíveis alicerces dos Direitos e Garantias Constitucionais deste País, a saber, os incisos XII e LVI, ambos insculpidos no art. 5º da Constituição Federal.   

Não bastasse isso, o próprio conteúdo das mensagens é colocado em xeque, pois há indícios que parte delas foram editadas e alteradas para fazer delas extrair contextos diversos dos originais.

A reboque de tudo, semeia-se uma forte instabilidade processual no País. O que é hoje poderá já não mais ser no amanhã, ainda que ancorado em sólidos e prestigiados dispositivos e entendimentos legais e constitucionais.

Coisas do Brasil. Apenas isso. Por isso somos o que somos.

 

Alipio Reis Firmo Filho

Conselheiro Substituto – TCE/AM e Doutorando em Gestão  

 

 

 

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