Até antes do advento da
Lei Complementar n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF) convivíamos
com uma verdadeira “torre de babel”. A confusão decorria da coexistência de
inúmeros códigos, nomenclaturas e procedimentos contábeis, orçamentários e fiscais. Cada ente
federativo, p. exemplo, tinha seu próprio plano de contas. Essa verdadeira “colcha
de retalhos” dificultava a consolidação das contas, ou seja, a reunião de todos
os dados dos entes subnacionais em demonstrativos que pudessem apresentar a
situação orçamentária, contábil e fiscal de todos os entes em conjunto.
A solução veio com a LRF.
Todavia, nem tudo ela podia estabelecer em detalhes. Ademais, vários
procedimentos esbarravam no interesse e nas peculiaridades dos entes
federativos, pois a dimensão continental do País representava um empecilho
nessa empreitada.
Foi então que a Lei
concebeu o Conselho de Gestão Fiscal, previsto em seu art. 67, nestes termos:
Art. 67. O
acompanhamento e a avaliação, de forma permanente, da política e da
operacionalidade da gestão fiscal serão realizados por conselho de gestão
fiscal, constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de
Governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da
sociedade, visando a:
I -
harmonização e coordenação entre os entes da Federação;
II - disseminação de práticas que resultem
em maior eficiência na alocação e execução do gasto público, na arrecadação de
receitas, no controle do endividamento e na transparência da gestão fiscal;
III - adoção de normas de consolidação das
contas públicas, padronização das prestações de contas e dos relatórios e
demonstrativos de gestão fiscal de que trata esta Lei Complementar, normas e
padrões mais simples para os pequenos Municípios, bem como outros, necessários
ao controle social;
IV -
divulgação de análises, estudos e diagnósticos.
§ 1o O conselho a
que se refere o caput instituirá formas de premiação e
reconhecimento público aos titulares de Poder que alcançarem resultados
meritórios em suas políticas de desenvolvimento social, conjugados com a
prática de uma gestão fiscal pautada pelas normas desta Lei Complementar.
§ 2o Lei disporá
sobre a composição e a forma de funcionamento do conselho.
Para a LRF o Conselho
funcionaria como um órgão supranacional em que representantes de diversos
segmentos e dos entes federativos e do Ministério Público poderiam nele sustentar seu ponto de vista e, juntos, chegarem às
conclusões que favorecessem a consolidação das contas públicas a partir da
uniformização de procedimentos em todo o País. Garantia-se, de antemão, a
segurança jurídica necessária, uma vez que a autonomia dos entes restaria
preservada.
No entanto, o legislador fiscal sabia perfeitamente que a
criação do Conselho poderia não ocorrer rapidamente. Por isso, a Lei definiu no § 2º de seu art. 50 que, enquanto não criado o Conselho, “A edição de normas gerais para consolidação das contas
públicas caberá ao órgão central de contabilidade da União”. Nascia
precisamente aqui a competência da Secretaria do Tesouro Nacional – órgão central
de Contabilidade do governo federal - para regulamentar a consolidação das
contas públicas no Brasil. Aqui está seu
fundamento de validade.
Observe, contudo, que a
própria LRF não transferiu todas as competências do Conselho de Gestão Fiscal
para a STN, mas tão-somente a competência para agir em prol da consolidação das
contas públicas. Todas as demais funções do Conselho continuam, portanto,
preservadas, até sua criação.
Pois bem. Enquanto órgão
central de Contabilidade da União a STN só dispõe de uma forma de manifestar
sua vontade: por meio de PORTARIAS.
Em relação à força normativas delas, tenho ouvido críticas no sentido de dizer
que elas não obrigam os entes federativos, justamente porque, na pirâmide
legislativa, ocupam posição inferior às leis; estas, sim, dotadas de força para fixar obrigações para os entes
subnacionais.
A afirmação, no entanto,
carece de fundamento e deve ser creditada à falta de conhecimento de causa.
Conforme visto, a
competência da STN encontra validade na própria Lei Complementar n. 101/2000 e
não no rol de suas competências ordinárias. É preciso que se entenda que a
atuação da STN no contexto da consolidação das contas nacionais não deve ser
interpretada como decorrente de vontade própria, mas do legislador fiscal, ao
regulamentar dispositivo de índole constitucional. Indiretamente, portanto, as
portarias da STN estão ligadas à própria Carta Magna, conforme representado na
figura a seguir:
Ou seja, há uma exigência
mútua. Primeiramente, a Magna Carta reclama a LRF. Na sequência, a própria LRF
exige a atuação da STN. São três níveis de exigências que se articulam entre
si. Os dois últimos níveis (LC 101/2000 e Portarias/STN) retiram seu fundamento
de validade do próprio Texto Constitucional.
Nesse sentido, atuando
a serviço da consolidação das contas, as portarias da STN possuem natureza só
FORMALMENTE infralegais, mas MATERIAMENTE legais. Por isso elas obrigam os
entes subnacionais.
Prova disso é o Manual de
Contabilidade Aplicado ao Setor Público que tem sido publicado por meio de
portarias. Cite-se, exemplificativamente, as Portarias/STN nºs 06/18, 07/18 e
877/18. O mesmo se aplica aos Manuais de Demonstrativos Fiscal que igualmente
foram publicados por meio de portarias, a exemplo das Portarias/STN nºs 286/19,
641/19 e 91/2020. Por fim, também se encontra nessa situação a Portaria/MF n.
548/2010, que estabeleceu os requisitos mínimos de segurança e contábeis do
sistema integrado de administração financeira e controle utilizado no âmbito de
cada ente da Federação, adicionais aos previstos no Decreto nº 7.185, de 27 de
maio de 2010.
A Portaria/MF n. 548/2010
retira seu fundamento de validade do art. 8º do Decreto nº 7.185/2020, nestes
termos:
Art. 8o No prazo de cento e oitenta dias a contar da data de
publicação deste Decreto, ouvidas representações dos entes da Federação, ato do
Ministério da Fazenda estabelecerá requisitos tecnológicos adicionais,
inclusive relativos à segurança do SISTEMA, e requisitos contábeis,
considerando os prazos de implantação do Plano de Contas Aplicado ao Setor Público
(PCASP), aprovados pela Secretaria do Tesouro Nacional.
O ato do Ministério da
Fazenda ali referido foi materializado
por meio da Portaria n. 548/2010. Ademais, conforme orienta o próprio artigo 8º,
referida Portaria não decorreu de uma vontade unilateral da Pasta da Fazenda,
mas depois de “ouvidas representações dos entes da Federação”. Portanto, os
demais entes subnacionais participaram da elaboração da Portaria/MF n. 548/2010,
legitimando-a em todos os seus aspectos. Não há, portanto, como tais entes
recusar-lhe sua aplicabilidade.
Por fim, citemos ainda o
Decreto federal nº 7.185/2010, fruto de exigência contida no inciso III,
parágrafo único, do art. 48 da LRF, dispositivo esse incorporado a ela pela Lei
Complementar n. 131/2009 (Lei da Transparência). Paira, igualmente, confusão
acerca desse decreto federal. Muitos acreditam que o referido Decreto não
obriga os demais entes federativos só pelo fato de sua natureza ser de um ato
regulamentar.
Há, aqui, o mesmo
problema.
Conforme visto, o
referido decreto federal encontra seu fundamento de validade na corpo da LRF.
Portanto, só FORMALMENTE ele é um puro ato regulamentar infralegal federal, não
MATERIALMENTE, uma vez que ele, assim como as portarias mencionadas, TAMBÉM
OBRIGAM NO PLANO JURÍDICO A TODOS OS ENTES SUBNACIONAIS (União, estados, DF,
municípios).
Com tais esclarecimentos
espanca-se, de uma vez por todas, qualquer discurso tendente a excluir da linha
de responsabilidade dos estados, DF e municípios, as portarias da STN
juntamente com a Portaria/MF n. 548/2010 e Decreto federal n. 7.185/2010.
Alipio
Reis Firmo Filho
Conselheiro
Substituto TCE/AM