sábado, 17 de outubro de 2020

POR QUE ALGUMAS PORTARIAS DE NATUREZA FISCAL DA SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL OBRIGAM OS DEMAIS ENTES FEDERATIVOS?

 Até antes do advento da Lei Complementar n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF) convivíamos com uma verdadeira “torre de babel”. A confusão decorria da coexistência de inúmeros códigos, nomenclaturas e procedimentos contábeis,  orçamentários e fiscais. Cada ente federativo, p. exemplo, tinha seu próprio plano de contas. Essa verdadeira “colcha de retalhos” dificultava a consolidação das contas, ou seja, a reunião de todos os dados dos entes subnacionais em demonstrativos que pudessem apresentar a situação orçamentária, contábil e fiscal de todos os entes em conjunto.

A solução veio com a LRF. Todavia, nem tudo ela podia estabelecer em detalhes. Ademais, vários procedimentos esbarravam no interesse e nas peculiaridades dos entes federativos, pois a dimensão continental do País representava um empecilho nessa empreitada.

Foi então que a Lei concebeu o Conselho de Gestão Fiscal, previsto em seu art. 67, nestes termos:

Art. 67. O acompanhamento e a avaliação, de forma permanente, da política e da operacionalidade da gestão fiscal serão realizados por conselho de gestão fiscal, constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de Governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade, visando a:

I - harmonização e coordenação entre os entes da Federação;

II - disseminação de práticas que resultem em maior eficiência na alocação e execução do gasto público, na arrecadação de receitas, no controle do endividamento e na transparência da gestão fiscal;

III - adoção de normas de consolidação das contas públicas, padronização das prestações de contas e dos relatórios e demonstrativos de gestão fiscal de que trata esta Lei Complementar, normas e padrões mais simples para os pequenos Municípios, bem como outros, necessários ao controle social;

IV - divulgação de análises, estudos e diagnósticos.

§ 1o O conselho a que se refere o caput instituirá formas de premiação e reconhecimento público aos titulares de Poder que alcançarem resultados meritórios em suas políticas de desenvolvimento social, conjugados com a prática de uma gestão fiscal pautada pelas normas desta Lei Complementar.

§ 2o Lei disporá sobre a composição e a forma de funcionamento do conselho.

Para a LRF o Conselho funcionaria como um órgão supranacional em que representantes de diversos segmentos e dos entes federativos e do Ministério Público poderiam nele sustentar seu ponto de vista e, juntos, chegarem às conclusões que favorecessem a consolidação das contas públicas a partir da uniformização de procedimentos em todo o País. Garantia-se, de antemão, a segurança jurídica necessária, uma vez que a autonomia dos entes restaria preservada.

No entanto, o legislador fiscal sabia perfeitamente que a criação do Conselho poderia não ocorrer rapidamente. Por isso, a Lei definiu no § 2º de seu art. 50 que, enquanto não criado o Conselho, “A edição de normas gerais para consolidação das contas públicas caberá ao órgão central de contabilidade da União”. Nascia precisamente aqui a competência da Secretaria do Tesouro Nacional – órgão central de Contabilidade do governo federal - para regulamentar a consolidação das contas públicas no Brasil. Aqui está  seu fundamento de validade.    

Observe, contudo, que a própria LRF não transferiu todas as competências do Conselho de Gestão Fiscal para a STN, mas tão-somente a competência para agir em prol da consolidação das contas públicas. Todas as demais funções do Conselho continuam, portanto, preservadas, até sua criação.

Pois bem. Enquanto órgão central de Contabilidade da União a STN só dispõe de uma forma de manifestar sua vontade: por meio de PORTARIAS. Em relação à força normativas delas, tenho ouvido críticas no sentido de dizer que elas não obrigam os entes federativos, justamente porque, na pirâmide legislativa, ocupam posição inferior às leis; estas, sim, dotadas de força  para fixar obrigações para os entes subnacionais.

A afirmação, no entanto, carece de fundamento e deve ser creditada à falta de conhecimento de causa.

Conforme visto, a competência da STN encontra validade na própria Lei Complementar n. 101/2000 e não no rol de suas competências ordinárias. É preciso que se entenda que a atuação da STN no contexto da consolidação das contas nacionais não deve ser interpretada como decorrente de vontade própria, mas do legislador fiscal, ao regulamentar dispositivo de índole constitucional. Indiretamente, portanto, as portarias da STN estão ligadas à própria Carta Magna, conforme representado na figura a seguir:



Ou seja, há uma exigência mútua. Primeiramente, a Magna Carta reclama a LRF. Na sequência, a própria LRF exige a atuação da STN. São três níveis de exigências que se articulam entre si. Os dois últimos níveis (LC 101/2000 e Portarias/STN) retiram seu fundamento de validade do próprio Texto Constitucional.

Nesse sentido, atuando a serviço da consolidação das contas, as portarias da STN possuem natureza só FORMALMENTE infralegais, mas MATERIAMENTE legais. Por isso elas obrigam os entes subnacionais.

Prova disso é o Manual de Contabilidade Aplicado ao Setor Público que tem sido publicado por meio de portarias. Cite-se, exemplificativamente, as Portarias/STN nºs 06/18, 07/18 e 877/18. O mesmo se aplica aos Manuais de Demonstrativos Fiscal que igualmente foram publicados por meio de portarias, a exemplo das Portarias/STN nºs 286/19, 641/19 e 91/2020. Por fim, também se encontra nessa situação a Portaria/MF n. 548/2010, que estabeleceu os requisitos mínimos de segurança e contábeis do sistema integrado de administração financeira e controle utilizado no âmbito de cada ente da Federação, adicionais aos previstos no Decreto nº 7.185, de 27 de maio de 2010.

A Portaria/MF n. 548/2010 retira seu fundamento de validade do art. 8º do Decreto nº 7.185/2020, nestes termos:

Art. 8o  No prazo de cento e oitenta dias a contar da data de publicação deste Decreto, ouvidas representações dos entes da Federação, ato do Ministério da Fazenda estabelecerá requisitos tecnológicos adicionais, inclusive relativos à segurança do SISTEMA, e requisitos contábeis, considerando os prazos de implantação do Plano de Contas Aplicado ao Setor Público (PCASP), aprovados pela Secretaria do Tesouro Nacional.

O ato do Ministério da Fazenda  ali referido foi materializado por meio da Portaria n. 548/2010. Ademais, conforme orienta o próprio artigo 8º, referida Portaria não decorreu de uma vontade unilateral da Pasta da Fazenda, mas depois de “ouvidas representações dos entes da Federação”. Portanto, os demais entes subnacionais participaram da elaboração da Portaria/MF n. 548/2010, legitimando-a em todos os seus aspectos. Não há, portanto, como tais entes recusar-lhe sua aplicabilidade.  

Por fim, citemos ainda o Decreto federal nº 7.185/2010, fruto de exigência contida no inciso III, parágrafo único, do art. 48 da LRF, dispositivo esse incorporado a ela pela Lei Complementar n. 131/2009 (Lei da Transparência). Paira, igualmente, confusão acerca desse decreto federal. Muitos acreditam que o referido Decreto não obriga os demais entes federativos só pelo fato de sua natureza ser de um ato regulamentar.

Há, aqui, o mesmo problema.

Conforme visto, o referido decreto federal encontra seu fundamento de validade na corpo da LRF. Portanto, só FORMALMENTE ele é um puro ato regulamentar infralegal federal, não MATERIALMENTE, uma vez que ele, assim como as portarias mencionadas, TAMBÉM OBRIGAM NO PLANO JURÍDICO A TODOS OS ENTES SUBNACIONAIS (União, estados, DF, municípios).

Com tais esclarecimentos espanca-se, de uma vez por todas, qualquer discurso tendente a excluir da linha de responsabilidade dos estados, DF e municípios, as portarias da STN juntamente com a Portaria/MF n. 548/2010 e Decreto federal n. 7.185/2010.

 

Alipio Reis Firmo Filho

Conselheiro Substituto TCE/AM


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