sábado, 22 de fevereiro de 2020

O CANTO DA SEREIA

(*) Texto publicado na minha Coluna Gestão no Fato Amazônico (www.fatoamazonico.com)


A sereia – ser mitológico, metade peixe, metade mulher – é uma das representações lendárias mais conhecidas em todo o mundo. Diz a lenda que os homens, enfeitiçados por sua beleza, eram conduzidos às profundezas dos oceanos até morrerem afogados.

O conto, na sua simplicidade e aparente ingenuidade, encerra, contudo, preciosos ensinamentos. Aliás, muitos bons ensinamentos.

Acredito que uma generosa fatia da humanidade admite que basta uma leve brisa para arrebatar o carente coração humano. Há pessoas que dão a vida pela habilitação para dirigir. Para elas, conduzir um veículo não representa apenas abrir a porta do carro, entrar nele e dar a partida. Por trás do ato de dirigir há uma brutal sensação de poder que elas mesmas não conseguem explicar. Dirigir um Boeng 737, então, nem se fala. É como ser dono do mundo durante algumas horas de vôo.    

Outras sonham em dirigir um país, ocupar um cobiçado cargo no mundo empresarial ou postos estratégicos no setor governamental. Não importa. Todas são manifestações vivas da vaidade, expressando desejos enraizados no mais íntimo compartimento do espírito; repetidas vezes, encerrando segredos guardados a sete chaves.   

Eis o fiel retrato da natureza humana. Eterna refém dos holofotes. Sedenta por notoriedades.  Ávida por aclamações. Subserviente ao extremo aos caprichos da alma.

Não é difícil domestica-la. Basta um punhado de elogios e alguns afagos. Não precisa mais que isso. É o preço ignóbil do que aparenta ser forte, poderoso e imponente. No fundo, não passa de uma bagatela.

Nessa seara, esquecem quase por completo dos motivos que as conduziram até ali. Das responsabilidades que tem. Das tarefas a realizar e dos problemas por resolver.  Preocupam-se menos com os outros e mais consigo mesmas.

É o canto da sereia traduzido para a modernidade. Inebriante. Envolvente. Sedutor. Confortável. Deslumbrante. Acolhedor. Tudo que um espírito carente deseja. O encaixe seria perfeito, se não houvesse um oceano profundo, escuro e sem perspectivas de navegabilidade pela frente cujos frutos, não raras vezes, são sinônimos de dor e sofrimento.


Para nossa reflexão.

Alipio Reis Firmo Filho
Conselheiro Substituto – TCE/AM e Doutorando em Gestão


terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

OS TRIBUNAIS DE CONTAS E O PATRIMÔNIO AMBIENTAL

(*) Texto publicado na Coluna Gestão do autor no Fato Amazônico (www.fatoamazonico.com.br)

Há um debate que volta e meia comparece nas discussões envolvendo os tribunais de contas: até que ponto eles são competentes para fiscalizarem questões ligadas ao meio ambiente? Como todo conteúdo que ainda não foi suficientemente amadurecido nas rodas de debate, quase sempre o tema tem suscitado pontos de vista diversos, regados, algumas vezes, a debates mais ácidos.

Uns entendem falecer competência aos tribunais de contas para proporem medidas relacionadas a infrações ambientais. Outros, contudo, admitem essa competência. Filio-me entre os últimos, ainda que com alguns regramentos.

O art. 70 da Constituição Federal assim dispõe: A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder (grifei).

Mais adiante, em seu art. 225 ela pontua: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações (grifei).

Conjugando-se os dois dispositivos, não há como não admitir o raio de incidência da ação fiscalizadora dos tribunais de contas sobre matérias ligadas a questões ambientais. Essa conclusão não provém, portanto, unicamente de conjecturas de ordem doutrinária. Antes, encontra arrimo no próprio legislador constituinte originário, que assim dispôs. Trata-se, portanto, de concepção alicerçada no Texto Constitucional federal.

Por outro lado, o inciso I do art. 99 do Código Civil Brasileiro enumera os bens de uso comum do povo – bens de uso coletivo por excelência – como integrantes dos bens públicos: São bens públicos: I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças. Antes dele, o art. 98 declara: São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno (...) (grifei).

A lógica jurídica é cristalina: premissa maior: todos os bens de uso comum do povo pertencem às pessoas jurídicas de direito público interno. Premissa menor: o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem de uso comum do povo. Conclusão: o meio ambiente ecologicamente equilibrado pertence às pessoas de direito público interno.

Sendo assim, não há como não conceber que o meio ambiente integra o acervo patrimonial de sobreditas pessoas jurídicas. Ora, se ele faz parte do acervo patrimonial público não faz sentido aparta-lo da ação fiscalizadora dos tribunais de contas, uma vez que o art. 70 do Texto Constitucional federal distingue a fiscalização patrimonial como um dos canais por meio dos quais a fiscalização dos órgãos de controle externo se manifesta.

Não vejo como extrair outra conclusão que não seja essa, até por questões humanitárias.

Façamos um raciocínio simples. 

Todos nós sabemos que as praças são contadas como  bens de uso comum do povo. Não há dúvida também que elas integram o acervo patrimonial dos entes federativos. De dez anos para cá, inclusive, as normas que regem a escrituração contábil no setor público passaram a admitir os bens de uso comum como passíveis de contabilização. Assim, na atualidade, o dever de registrar contabilmente uma mesa ou um veículo pertencente às instituições governamentais se estende também às praças públicas. Não há qualquer diferença de tratamento contábil entre eles. Suas raízes são exatamente as mesmas: ambos integram o patrimônio governamental. Ora, se uma simples praça se sujeita à ação fiscalizadora do tribunal, qual o motivo, então, para retirar de sua fiscalização o meio ambiente? Não são ambos bens de uso comum do povo? Ambos não contribuem – cada um a sua maneira – para a vida sadia? Para a qualidade de vida? Para a manutenção da vida? Os dois não estão a serviço da coletividade? Indubitavelmente que sim. Uma praça pública não é apenas um adorno urbano. Ela é, essencialmente, como se fosse um balão de oxigênio a renovar o ar dos aglomerados urbanos, tão comprometido na atualidade pelo dióxido de carbono. A mesmíssima função desempenha o meio ambiente. Aliás, com incontáveis vantagens!!

É bem verdade que a atividade fiscalizadora das cortes de contas não é plena em alguns redutos. Em algumas oportunidades o Judiciário já censurou condutas dos tribunais de contas que tangenciaram licenças ambientais concedidas pelos órgãos de proteção ambiental por entender que, em tais casos, a competência fiscalizatória dos órgãos de controle externo deve ser suprimida, uma vez que o órgão de proteção ambiental se encontrava no exercício pleno de seu poder de política. Isso ocorreu em um embate envolvendo o Tribunal de Contas do Estado do Amazonas e o Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Longe de dizer, entretanto, que, a partir desse entendimento, o Judiciário amazonense tenha afastado a ação fiscalizadora do Tribunal em questões ligadas ao meio ambiente. Em absoluto. O que restou claro na referida apreciação judicial é que no exercício do poder de polícia pelos órgãos de proteção ambiental  não há como se conceber condutas fiscalizadoras concorrentes. Nada mais lógico. Dizer o contrário é esvaziar a competência do órgão ambiental. Mas daí entender que essa exclusividade alcança outros terrenos é afrontar disposições alicerçadas pelo legislador constituinte originário.

Com efeito, em matéria ambiental, o exercício das competências enumeradas nos incisos I a XI do art. 71 da Constituição federal pelos tribunais de contas é pleno. Dentre essas, destaque-se o poder-dever de “assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade” (inciso IX); e “representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados” (inciso XI).

Em síntese, resta claro que matérias ambientais se sujeitam in totum à ação fiscalizadora dos tribunais de contas. Essa dimensão se insere no escopo do O QUE as cortes de contas devem e podem fiscalizar. Agora, COMO essa fiscalização se opera é que em dadas situações deve respeitar certos limites. É preciso ficar claro, todavia, que a censura realizada pelo judiciário quanto à determinada forma de fiscalização adotada incide APENAS sobre a modalidade censurada. Não sobre todas elas. A meu ver, todas as ações fiscalizatórias conduzidas pelos tribunais de contas que, de alguma forma, SOMEM e CONSOLIDEM esforços para a obtenção de um ambiente ecologicamente equilibrado – desde que respeite critérios de razoabilidade – devem ser recebidas como altamente positivas pois, no dizer do legislador constituinte originário “contribuem para a sadia qualidade da vida”.

É como penso.

Alipio Reis Firmo Filho

Conselheiro Substituto – TCE/AM e Doutorando em Gestão           

JESUS DE NAZARÉ



(*) Texto publicado na Coluna Gestão do autor, no Fato Amazônico (www.fatoamazonico.com.br)


Certa vez, Cristo fez uma pergunta desconcertante e, ao mesmo tempo, intrigante aos seus discípulos: “Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?” (Mt 16, 13-20). Em seguida, alguns deles responderam: ‘Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; Outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas’

Passados pouco mais de dois mil anos o mundo continua em dúvida sobre a figura de Cristo. Quem é Ele de fato? É Homem? É Deus? É apenas um personagem histórico como todos os demais, que viveu e morreu numa época distante e que, como todos os outros, não existe mais?

Há quem duvide de sua existência física. Acham que não passou de uma lenda. Alguma fábula contada ao longo dos anos. Uma ilusão. Fruto da imaginação de alguns que só existiu na cabeça de fanáticos e continua existindo na atualidade. Nada mais que isso.

Outros preferem ridiculariza-lo, tomando-o como um oportunista que, no fundo, estava sedento por poder e  liderança, mas que sucumbiu frente ao império romano e aos  contemporâneos de seu tempo.
Na verdade, o questionamento intrigante de Cristo parece ter atravessado os séculos e  alcançado o nosso tempo. Sem perceber, o cinema, o teatro, a televisão e a literatura tentam, como os contemporâneos do Mestre da Galiléia, defini-lo. Buscam, às apalpadelas, os contornos de sua personalidade. Mais parecem tatearem no escuro. Como cegos em meio à escuridão. 

O certo é que a cada ataque, a cada crítica ácida que alguém lança sobre Ele, Cristo continua firme. Nada consegue movê-lo, por mais duro que seja o golpe. Contemplando o passado e o transcorrer dos anos, a gente entende melhor por que as Sagradas Escrituras o compara a uma rocha. Uma tal “pedra angular”, que despedaça aquele sobre o qual ela cai e confunde o que nela tropeça. A comparação não poderia ser mais precisa.

Também parece fazer sentido o que Ele disse certa vez: “Não vim trazer paz à terra, mas a espada. Pois Eu vim para ser motivo de discórdia entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria família” (Mt 10:34 -36).
De fato. A História da humanidade é próspera dessa divisão. No mundo contemporâneo não é diferente. Existem os pró e os contra Cristo. Eu estou entre os primeiros. 

Desde a adolescência leio sobre a figura de Cristo. Já li muitas vezes várias passagens do Antigo e do Novo Testamento. Algumas delas sempre me chamaram atenção (e continuam chamando).
Faço minhas as palavras de alguns soldados romanos. Enviados com a missão de prender Jesus voltaram de mãos vazias e justificaram: “Nunca homem algum falou como este homem” (Jo 7: 40-53). Essa é uma passagem que faz a gente pensar. O depoimento não foi colhido de alguém que o seguia e muito menos de quem o admirava. Brotou de corações que talvez nunca tiveram contato pessoal com Jesus de Nazaré. No máximo talvez tivessem ouvido falar sobre Ele. Quando passaram pela experiência de ouvi-lo e o contemplaram diretamente, a experiência foi devastadora. Eles próprios foram misteriosamente desarmados. Não lhes restou outra saída senão pegarem o caminho de volta e testemunharem a favor do Cristo.

Sim. De fato. Nenhum outro homem falou como Jesus Cristo. Ninguém antes dele (e depois dele) teve a ousadia de tocar o sobrenatural com tanta intimidade. Há inúmeras passagens nos Evangelhos nesse sentido. Cada uma mais intrigante que a outra. Eis algumas dessas belas passagens:

“Então, levantando-se, deu ordem aos ventos e ao mar, e fez-se uma grande calmaria” (Mt 8:26).

“Eu entrego a minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim; antes eu a entrego de espontânea vontade. Tenho poder para entrega-la, e poder para retoma-la” (Jo 10: 17-18).

“Agora, pois, Pai, glorifica-me junto de ti, concedendo-me a glória que tive junto de ti, antes que o mundo fosse criado” (Jo 17:5).

“Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt 28:18)

“Os seus pecados estão perdoados” (Lc 5: 23)

“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão” (Mt 24:35)

“Lázaro, sai para fora” (Jo 11:43)

E, talvez, a mais impressionante de todas elas: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14:6)
Note que em todas essas passagens Cristo avoca para si virtudes e características que a natureza humana jamais poderá invocar. Ele se coloca como alguém que está acima do espaço e do tempo. Alguém capaz de “brincar” com os elementos da própria vida. Isso é sério demais!!!

Qualquer um personagem que ousasse dizer o que Cristo disse seria taxado imediatamente de louco. Aliás, Ele próprio foi assim considerado por muitos de seus contemporâneos.

Nada disso, porém, me impressiona. Conforme ensina a Santa Sé, a figura de Cristo é tão marcante e sua personalidade é tão incomparável porque ele reúne algo que nenhum mortal possui: Ele é Deus!!
Foi isso, aliás, que Paulo destacou numa passagem de sua Carta aos Filipenses: “Jesus Cristo, existindo em condição divina, NÃO FEZ DO SER IGUAL A DEUS uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens” (Fl 2: 6-7).

Eis a razão por que Cristo é atemporal. Eis o motivo por que Ele dividiu o calendário ocidental em duas partes. Eis o significado de tantas incompreensões do mundo em relação à sua figura. Eis a verdadeira causa de milhões de pessoas em todo o mundo, mesmo sem conhece-lo, abraçar sua fé, sua doutrina e seus ensinamentos.

É sempre bom termos em boa conta as sábias palavras de Gamaliel, um fariseu que, reunindo em particular com o Sinédrio, que pretendia matar Pedro e os apóstolos em razão dos milagres que realizavam, ponderou com brutal sabedoria: “Israelitas, considerem cuidadosamente o que pretendem fazer a esses homens. Há algum tempo apareceu Teudas, reivindicando ser alguém, e cerca de 400 homens se juntaram a ele. Ele foi morto, todos os seus discípulos se dispersaram e acabaram em nada. Depois dele, nos dias do recenseamento, apareceu Judas, o galileu, que liderou um grupo de rebelião. Ele também foi morto, e todos os seus seguidores foram dispersos. Portanto, neste caso eu os aconselho: deixem esses homens em paz e soltem-nos. Se o propósito ou atividade deles for de origem humana, fracassará; SE PROCEDER DE DEUS, VOCÊS NÃO SERÃO CAPAZES DE IMPEDI-LOS, POIS SE ACHARÃO LUTANDO CONTRA DEUS” (At 5: 35-39).

Já se passaram dois milênios e a doutrina de Cristo continua firme. Tomando por referência a sábia orientação de Gamaliel, parece que não se trata de algo com dimensões puramente humana. Se assim o fosse, já teria sucumbido. Trata-se de um convite à reflexão formulado a todos nós. O Mistério de Cristo é algo supra-humano e sobrenatural. Que possamos refletir mais sobre esse grande presente que nos foi dado pelo Pai.

Feliz Natal a todos!! Que o Criador abençoe a todas as famílias!!

Alipio Reis Firmo Filho

Conselheiro Substituto – TCE/AM e Doutorando em Gestão


domingo, 10 de novembro de 2019

FOLHAS SECAS



(*) Texto publicado na minha Coluna Gestão no Fato Amazônico (www.fatoamazonico.com)




Há três estruturas na natureza que realizam papéis fundamentais  a favor da   vida: a seiva, o sangue e a água.

A seiva é responsável pela condução dos elementos vitais no interior das árvores e das plantas. Carrega uma preciosa carga, representada por água, nutrientes, hormônios, oxigênio e gás carbônico. Todo o conjunto é transportado por meio de uma complexa estrutura vascularizada, constituída por canais que, à semelhança de ductos, comunicam entre si diferentes compartimentos no interior dos vegetais. Sem seiva não haveria fotossíntese e, sem ela, também não existiria a produção de oxigênio o que decretaria a morte de todo o mundo animal.   

O sangue, por sua vez, é um velho conhecido nosso. Sem ele, boa parte do reino animal inexistiria. A função do sangue é alimentar o corpo animal, além de recolher o lixo produzido por ele diariamente. Para nutri-lo, transporta nutrientes, oxigênio, gás carbônico, hormônios e anticorpos de um compartimento a outro; por meio de uma extensa rede constituída por artérias, veias e capilares. Não fosse o sangue, toda a estrutura humana desabaria por inanição e por toxinas.

A água é também uma antiga conhecida. Circula no interior do planeta distribuindo vida por onde passa. Assim como o sangue e a seiva, irriga tudo o que toca. Refrigera, alimenta, limpa e suaviza as superfícies, restaurando o solo em toda a sua plenitude.

Sem sangue, sem água e sem seiva não há vida. O tecido humano apodrece; o solo perde seu vigor e as folhas secam paulatinamente. A solução é amputar o membro comprometido, descartar a folha esmaecida e renovar o solo, sob pena de todo o edifício da vida vir a baixo. Assim o é na natureza. Assim deve ser no mundo jurídico.  Eis um grande ensinamento para os operadores do Direito.

Passo a reproduzir aqui um trecho de um artigo meu intitulado LIMITES À APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DAS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (LEI Nº 13.105/2015) À LEI ORGÂNICA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO AMAZONAS, publicado em 2018 na Obra “Processos de Controle Externo”, pela Editora Fórum: “A lei, enquanto modalidade de expressão da Ciência Jurídica, pretende abrigar em seu interior valores sociais capazes de manter o equilíbrio nas relações de convivência. Imbuída desse propósito, observa o cotidiano, a procura do que há de mais relevante nos fatos da vida. Em seu trajeto, pondera e analisa tudo o que encontra ao derredor tentando abstrair-lhe o conteúdo e, principalmente, seu significado.  Ao final, recolhe o que considera mais importante para a vida em sociedade, normatizando-o e atribuindo-lhe uma consequência jurídica. Assim nasce a previsibilidade da Ciência do Direito, condensada na norma legal, resultado da atividade legislativa.  O mundo dos fatos, portanto, inspira, contínua e indefinidamente, o mundo do Direito.  Conquanto sejam realidades distintas, ambos trabalham conjuntamente em prol do mesmo objetivo: a vida pacífica em sociedade.   O convívio social, contudo, é por demais dinâmico. Muda constantemente. O que é hoje no presente poderá não mais existir no futuro. Os valores sociais se alternam e se alteram com frequência. Seus significados também. Ora se dilatam, ora se retraem. Desaparecem e reaparecem abruptamente.  Por isso é tão difícil o Direito acompanhar a tábua de valores sociais. O mandamento legal é como uma fotografia. Captura apenas um instante do presente, congelando-o no tempo e no espaço.  Daí por diante, a dinamicidade da vida encarrega-se do resto. A ingovernabilidade do mundo dos fatos promove rupturas, dissociando-os do que fora cristalizado no mandamento legal. Direito e sociedade já não falarão a mesma língua. Pautar-se-ão por valores distintos.  Questões do mundo real já não encontrarão correspondência no mundo jurídico. Nascem as lacunas do Direito.    Por mais que se afadigue, a atividade legislativa jamais poderá acompanhar a velocidade das mudanças sociais. Uma se desloca a passos aritméticos enquanto a outra só geometricamente avança em seu percurso. Por mais bem aparelhado que seja o legislador diligente, ele só poderá se debruçar sobre uma matéria legislativa de cada vez. Não mais que isso. Ou seja, as necessidades de regulamentação serão sempre superiores à capacidade de produção legislativa. Em razão disso, o mundo jurídico terá que conviver com suas defasagens, indefinidamente”.

Juristas e filósofos da estatura de Herbert Lionel Adolphus Hart, Ronald Dworkin e Karl Engisch dedicaram suas vidas refletindo sobre essa problemática. Seus ensinamentos ajudaram a consolidar uma importante corrente jurídica doutrinária denominada “Jurisprudência de Valores”. Para eles, sempre que o valor cristalizado numa norma jurídica não mais encontra correspondência nos valores sociais, é imperativo admitir-se a existência de lacunas no ordenamento jurídico; semelhantes aos buracos na camada de ozônio que circunda o planeta Terra. Trata-se das chamadas “lacunas axiológicas”, por envolver a ausência do elemento mais subjetivo de uma norma jurídica: o valor.

Segundo essa importante corrente doutrinária, todas as vezes que os operadores do Direito se depararem com tal realidade, poderão realizar a atualização da norma, colocando-a em sintonia com os valores sociais contemporâneos. Nesse trabalho cognitivo, deverão  animar-se pelos anseios de justiça e paz social. Parafraseando disposição da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, a aplicação da lei ao caso concreto deverá guardar conformidade com os fins sociais da norma operada. Somente assim o magistrado garanti-lhe a eficácia social plena.  

No fundo, a Jurisprudência de Valores está alicerçada no componente mais importante da norma jurídica: o Valor. Ele, juntamente com o fato e a própria norma, constitui a célula da qual se origina o tecido jurídico, gênese de todo o ordenamento jurídico. Quando o valor se esvai, imediatamente o tecido definha. É como uma lâmpada que vai perdendo seu brilho até se apagar completamente, deixando atrás de si um ambiente de completa escuridão.

São como folhas secas que merecem ser podadas pelo operador do Direito, a fim de que outras possam florescer em seu lugar.  

Se, todavia, este insiste em conserva-la, exatamente como era antes, então a Justiça se desgarra do Direito. O certo transforma-se no errado. A paz social se vê ameaçada e as instituições públicas caem no descrédito. Eis a precisa  realidade retratada na fatídica decisão tomada no último dia 07 de novembro por nossa Suprema Corte, decidindo a favor da prisão de delinquentes somente depois do trânsito em julgado. Por meio dela,   concedeu  sobrevida a um dispositivo constitucional nascido há 31 anos atrás que, na atualidade, já não mais encontra correspondência nos valores sociais contemporâneos,  pois lhe falta o elemento vital: o valor.  

Isso explica a queixa, o protesto, a reclamação, a dúvida e toda a forma de repúdio gestada no meio social. No mínimo, reclama uma profunda reflexão de todos nós, em especial, de nossos magistrados. 

Alipio Reis Firmo Filho

Conselheiro Substituto - TCE/AM e Doutorando em Gestão

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O JUDICIÁRIO E AS BANCAS DE CONCURSOS PÚBLICOS


Houve um tempo em que o Judiciário nacional não censurava as decisões das bancas de concursos públicos. Muitos magistrados diziam que as decisões das bancas eram intocáveis. Ao Poder Judiciário falecia a competência para criticá-las. Apenas em situações isoladas – mais ou menos, 10% das ações – é que um ou outro magistrado criticava a decisão das bancas. Mas a regra não era essa. Vigorava a soberania das bancas. O que elas dissessem, estava dito e ponto final.

Felizmente isso é coisa do passado. A realidade mudou. As decisões das bancas já não passam tão ao largo das críticas do Judiciário nacional. Muito pelo contrário! Nos últimos anos a magistratura tem se debruçado cada vez mais sobre algumas condutas, no mínimo, “estranhas” das bancas de concursos públicos.

Um dos que mais defendem a competência do Judiciário para intervir nas decisões das bancas é o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Herman Benjamin. Em Voto proferido na Segunda Turma do STJ, no qual apreciava um mandado de segurança impetrado por um candidato que rogava a nulidade de várias questões do concurso que havia participado, ao argumento que o conteúdo exigido nas questões não fazia parte do conteúdo programático do certame, o Ministro pontuou: cabe ao Judiciário “pôr algum freio” nesses casos excepcionais, justamente para não dar margem à formação de uma “intocabilidade e infalibilidade das comissões de concurso”. “Se não houver uma instituição isenta, com conhecimento de causa, para limitar ou mitigar esses abusos, vamos terminar, aí sim, em uma República de bacharéis, no sentido mais pernicioso da expressão”. O caso foi objeto do Recurso em Mandado de Segurança nº 49.896, da Relatoria do Ministro OG Fernandes, acompanhado na íntegra pela Segunda Turma do STJ. A firme jurisprudência do STJ considera que a censura é cabível pois o ato praticado pelas bancas de concursos públicos não se configura como um ato de mera gestão. Trata-se, segundo o STJ, de um “ato típico de direito público, vinculando-se ao juízo jurídico- administrativo. Em razão disso, deve observar os princípios que vinculam toda a Administração, como a supremacia do interesse público, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e todos os demais”. É o que consta no excerto do informativo de jurisprudência do STJ a seguir:


Em outro julgado (REsp 1689499 SC 2017/0189768-0), a Ministra Assusete Magalhães,  também do STJ, perfilhando essa mesma linha de entendimento destacou que “a jurisprudência pátria vem reconhecendo a sindicalidade judicial de erro grosseiro verificando em enunciados de questões de prova de concurso público (erro material primo ictu oculi), notadamente porque a discricionariedade administrativa não se confunde com a arbitrariedade ou a abusividade, sendo certo que conveniência e oportunidade não são conceitos absolutamente isentos de análise judicial (...) Verificada a existência de erro material no enunciado e no respectivo espelho de respostas da peça processual relativos à segunda etapa do X Exame Unificado da Ordem dos Advogados do Brasil, necessária se mostra a intervenção judicial, com a anulação dos quesitos pertinentes, em homenagem aos princípios regentes do atuar administrativo, em especial a proteção da confiança dos administrados”.

O Supremo Tribunal Federal vai na mesma linha de entendimento do STJ. No Recurso Extraordinário nº 1178117 RS – Rio Grande do Sul, o Ministro Marco Aurélio Mello destacou que, “Em regra, cabe ao Judiciário tão somente a análise do preenchimento dos requisitos legais em relação às questões. Constatado que a questão possui ao menos duas respostas corretas, é imperativa a anulação da questão”.

Por outro lado, o próprio STF sumulou o tema por meio de sua Súmula 684: É inconstitucional o veto não motivado à participação de candidato a concurso público. Ou seja, o candidato que se sentir lesado em seu direito de continuar no certame, entendendo existir veto não motivado, pode bater às portas do judiciário. A Súmula 684 reforça o entendimento do STJ pelo qual o ato praticado pelas bancas tem o dever de reunir todos os requisitos a ele inerentes, dentre os quais, o motivo. A referida Súmula fundamentou Decisão Monocrática do Ministro Roberto Barroso no RE 1.013.387.
Aliás, a Lei estadual nº 4.605/2018, que rege os concursos públicos realizados no Estado do Amazonas, no inciso II de seu art. 2º, determina que os concursos públicos realizados no âmbito do Estado do Amazonas deverá observar, dentre outros Princípios constitucionais, também a MOTIVAÇÃO. Confira:



A partir dessas e outras manifestações do STF e do STJ o judiciário vem reconhecendo, cada vez mais, o direito dos candidatos em concursos públicos de recorrerem ao judiciário para censurarem decisões das bancas de concursos públicos que abriguem elementos irrazoáveis, bizarros e completamente alheios ao senso comum, todos traduzidos por ERROS GROSSEIROS que jogam no lixo horas de estudos e, muitas vezes, completa abstinência do convívio familiar e social, protagonizados por quem decide pleitear uma vaga num concurso público. Eis alguns julgados:




Alguns exemplos de erros grosseiros que comumente são objeto de queixa por parte dos candidatos a concursos públicos: (i) mais de uma questão correta quando o edital previa apenas uma opção do candidato; (ii) conteúdo cobrado na prova diferente do exigido no Edital; (iii) critérios de correção das provas não previstos no respectivo Edital do certame; (iv) juízo contraditório na avaliação de prova discursiva.

Este que vos escreve também teve o dissabor de ter sido prejudicado por decisão de uma banca de concurso público quando participou, como candidato, à vaga que atualmente ocupa no Tribunal de Contas do Estado do Amazonas. Na oportunidade, em uma das questões discursivas, a Fundação Carlos Chagas solicitara dos candidatos que enumerassem e descrevessem quatro princípios contidos no Regimento Interno que regulassem os processos que tramitam no Tribunal. Um dos princípios por mim descritos foi justamente os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. Acho, inclusive, que boa parte dos candidatos (se não todos) havia, como eu, lembrado dos tais Princípios, dada a popularidade que eles desfrutam no meio acadêmico e profissional. Para minha surpresa, a banca considerou a resposta incorreta. Solicitei, então, revisão da decisão. Não adiantou. A banca manteve a decisão dizendo que os princípios referidos não constavam no art. 62 da norma regimental. De fato, não estavam, mas vejam a norma cabeça desse dispositivo: “Art. 62. São princípios do processo, além dos princípios gerais aplicados à Administração Pública, os seguintes (...)”. Ou seja, tratava-se de uma relação apenas exemplificativa, não taxativa dos princípios ali enumerados. Dentro dos princípios gerais aplicados à Administração Pública certamente comparecem os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. Ou seja, houve erro grosseiro na exegese do dispositivo por parte da banca examinadora. Não bastasse isso, o mesmo dispositivo, em seu inciso II, faz referência expressa à conformidade do processo com o Princípio do Devido Processo Legal cujos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa são seus consentâneos. A propósito, ainda, do ocorrido, o Regimento Interno do Tribunal separou um capítulo inteiro apenas para tratar da aplicabilidade dos mencionados princípios nos processos que nele tramitam. O capítulo mencionado, aliás, era intitulado justamente de “DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA”, conforme arts. 81/88. A banca ignorou tudo isso ancorada em decisão completamente desarrazoada e alheia às normas de boa conduta no trato e manejo nos negócios públicos.  À época, prevaleceu a ditadura da banca.

Em boa hora, portanto, o Judiciário intervém nos decisórios das bancas de concursos públicos, a fim de eliminar excessos que repetidas vezes sepultam sonhos de inúmeros candidatos a concursos públicos.

Está de parabéns o Judiciário nacional!!
 
Alipio Reis Firmo Filho
Conselheiro Substituto – TCE/AM e Doutorando em Gestão  
 


sábado, 28 de setembro de 2019

A CORRUÇÃO NA SAÚDE PÚBLICA


Por Alipio Reis Firmo Filho (Artigo publicado na Coluna Gestão no Fato Amazônico)

A corrupção no setor público é abominável em todas as suas modalidades. Ela é como um potente ácido. Queima e consome tudo o que vê pela frente, deixando atrás de si um rastro de destruição. São choros, dores, sofrimentos e desesperos. Um oceano de lágrimas que jorra de corações oprimidos, costumeiramente esquecidos e abandonados.  Não há vida onde ela pisa. Não existe esperança onde ela toca. Mesmo aqueles que afirmam com ela conviver, mais cedo ou mais tarde, longe ou perto, acabam recebendo a paga por suas ações. Algumas vezes, da forma mais inusitada. Muitos nem se dão conta disso.   

Assim o é com a obra paga e não medida, com o produto comprado e não recebido, com o tributo injustamente dispensado e com a merenda escolar que não visita as creches e escolas. Tudo é tragado por um imenso redemoinho. Movido apenas pela força da ganância e do apetite de alguns.

Mas há uma forma de corrupção que considero a mais letal de todas. Nela, o choro é mais intenso, a dor é mais profunda, o sofrimento é inigualável e o desespero é infinitamente maior. Falo da corrupção na saúde. Talvez a forma mais mesquinha, leviana e infame de desviar dinheiro público.  
Enquanto qualquer outra forma de corrupção subtrai o alimento da mesa da coletividade, a corrupção na saúde lhe retira o que ela tem de mais precioso: A VIDA. Por isso ela é tão letal. Por isso ela mata incomparavelmente mais que todas as demais.

Se pudéssemos enxergar – como num grande telão - o rastro de sangue deixado pela corrupção no sistema público de saúde, talvez nosso sono nunca mais fosse o mesmo. Uma verdadeira carnificina. Algo semelhante aos campos de concentração da Alemanha nazista. Sem exagero algum.
-Quantas pessoas deixam de fazer suas cirurgias diariamente, o que lhes proporcionaria alívio na sua dor e no seu sofrimento, simplesmente  porque faltam materiais para realiza-las??? Já pensou nisso?
 -Quantos não batem às portas dos postos de saúde em busca da medicação desejada, que lhes permitiriam dormir melhor, comer melhor, falar melhor, pensar melhor, andar melhor, enfim, ter um mínimo de qualidade de vida, e são despedidos de mãos vazias quando lá chegam??? Já refletiu sobre isso?
- Quantos não deixam de fazer um exame clínico, capaz de identificar, instantaneamente, um mal, trata-lo a tempo e evitar seque-las, muitas vezes, irreversíveis??? Alguma vez você já se fez esse questionamento?

- Quantas crianças não morrem prematuramente, só pelo fato de as maternidades não disporem de condições, por falta de dinheiro, de lhes oferecerem um nascimento digno???

- Quantos acometidos por doenças crônicas (cardíacas, renais, hepáticas, oncológicas) morrem, todos os dias, em casa ou nos hospitais públicos, por absoluta falta de assistência do dinheiro público???

Mas, como disse, a corrupção na saúde pública é mais letal que todas as demais. Ela não mata apenas o paciente. Atinge, cruelmente, toda a sua família e amigos. O sofrimento é conjunto. A dor é coletiva. É como uma bomba de neutros. Mata silenciosamente e sem  alarde. 

Quantos sequelados não são produzidos diariamente só pelo fato de as farmácias públicas não disporem em seus estoques de remédios para o controle da pressão arterial ou dos níveis de açúcar no sangue?

Vivemos tempos sombrios, senhores. Na saúde pública, entretanto, as nuvens parecem ser bem mais escuras que as demais. Há morte por toda a parte e nós sequer nos damos conta disso. Como se nada tivéssemos a ver com isso.     

E quanto àqueles que produzem esse genocídio? O que fazer deles?  Aplicar as mesmas sanções que são aplicadas para outras situações? Tenho cá minhas dúvidas. Os especialistas na matéria penal afirmam que deve haver uma proporcionalidade entre o ilícito cometido e a sanção correspondente. Isso funciona direitinho na teoria, mas na prática...

As coisas são bem diferentes.

Há muito defendo que nossa Constituição “cidadã” já não é mais tão cidadã que outrora. Muitos dispositivos já foram revogados pela tábua de valores da sociedade brasileira. É grande a indignação coletiva. É imensa a sede por justiça. Muitos de seus dispositivos já não mais respondem aos anseios por justiça. Nesse ponto, estou com Maria Helena Diniz, ao admitir a existência das lacunas ontológicas e axiológicas, ambas refletindo o descompasso entre a (velha) norma jurídica e os valores sociais contemporâneos.

O atual texto constitucional, p. exemplo, impede a aplicação da pena perpétua no País. Trata-se de uma cláusula pétrea que é imune às mutações constitucionais via emendas. Na minha singela opinião, tal disposição já deveria ter sido objeto de reflexão, a fim de avaliar até que ponto o comando constitucional satisfaz os valores sociais mais sensíveis. A vida, certamente, está entre eles que, aliás, os encabeça.

Como tratar igualmente os (tipos) desiguais, desconsiderando-se a exata medida de suas desigualdades? Como ignorar os danos (imensos) gerados pela corrupção na área da saúde cujas consequências não se limitam a meras infrações de procedimentos ou locupletamento de recursos públicas, indo além, ceifando vidas e semeando dor e sofrimento à família e aos amigos do paciente? Nunca devemos nos esquecer: os efeitos da corrupção na saúde pública funcionam como EXTERNALIDADES. Suas consequências nocivas atravessam a órbita do seu destinatário (paciente, doente) e alcançam muitas outras pessoas que não participaram diretamente da relação poder público/paciente.

Para a reflexão de todos nós.


O PAÍS DOS INTOCÁVEIS



Por Alipio Reis Firmo Filho (Texto publicado na Coluna Gestão do Fato Amazônico)


As coisas pareciam ir tão bem e no rumo certo. Tudo de acordo com nossos anseios por justiça e  mudanças. Muitos “peixes graúdos” na cadeia. Gente que nunca imaginou estar atrás das grades agora amargava a experiência de ver o sol nascer quadrado, igual a qualquer ladrão de galinha. Pessoas que se colocavam acima do bem e do mal, de uma hora para outra, protagonizavam cenas que mais pareciam filmes de ficção científica. Realidades nunca antes imaginadas, de repente, eram estampadas nos meios de comunicação de todo o País. Grampos telefônicos revelavam a verdadeira face do crime, de como eram engendrados, tramados e costurados. Uma teia sem fim de interesses escusos, guardados a sete chaves, mas que a perspicácia de alguns teimou e conseguiu revelar.

Figurões que costumavam bater no peito como defensores árduos do fraco e do pobre. Políticos, empresários e administradores públicos influentes, agora eram identificados como os verdadeiros traidores da Pátria. Gente mesquinha. Gente ardilosa. Profissionais da mentira. Finalmente, parece que  as coisas haviam entrado nos eixos. Bastava manter o ritmo e... pronto. Tínhamos a esperança de chegarmos a sermos o País sério, ordeiro e disciplinado que qualquer cidadão do primeiro mundo estava acostumado a vivenciar.

Engano nosso. Triste engano.

Parece que acabamos de acordar de um grande sonho. Um sonho maravilhoso que há anos sonhávamos em sonhar. O tempo acaba de fechar e parece que as nuvens escuras tomaram conta de nosso céu de brigadeiro.

O cidadão de bem acaba de ser esfaqueado. Foram duas estocadas certeiras, profundas e com consequências incalculáveis.

No último dia 24/09 protagonizamos algo surrealista.    O bandido, o ladrão, o que assalta, o sanguinário, o que mata e o que rouba aplaudiram, de pé, a mais uma barbárie cometida contra o cidadão de bem.  A Câmara dos Deputados derrubou 18 dos 36 vetos presidenciais à recém aprovada lei de abuso de autoridade. Aliás, muitos juristas, magistrados, promotores de justiça e procuradores da República defendiam veementemente que a recente lei fosse vetada integralmente pelo presidente; tal era o teor de veneno que carregava em seus dispositivos. Infelizmente, isso não ocorreu. A solução presidencial foi retirar apenas 36 dispositivos do texto da lei. Tudo bem, pelo menos isso.

Sobre a aprovação da referida lei, estava mais para proteger bandidos do que salvaguardar direitos contra eventuais excessos. Na verdade, as organizações criminosas  não poderiam ficar de braços cruzados. Tinham que fazer algo para se defenderem de quem lhes ameaçava puxar o tapete. A solução veio por meio de um projeto de lei que pune juízes, procuradores e promotores por abuso no exercício de suas funções. Com a aprovação do texto quem decretar a prisão de bandidos que saqueiam os cofres públicos terá que ter suas cautelas. Poderá vir a responder por “abuso de autoridade” (imagine!!). Ou seja, na prática, colocaram uma arma nas mãos das milícias para atirarem sempre que se sentirem ameaçadas de largarem o osso. Algo bizarro, absurdo e descabido!!

Interessante notar que o texto da lei não prevê nenhuma punição contra aqueles que soltam graciosamente os gatunos, por meio de decisões desarrazoadas, tacanhas, sem pé e sem cabeça como, aliás, temos testemunhado diariamente nos meios de comunicação. Ou seja, incriminam quem prende e deixam de lado quem solta. Bela equação!! 

A segunda punhalada veio ontem, protagonizada pelo nosso Pretório Excelso. Reunidos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal praticamente bateram o martelo a favor da tese que pode anular 143 das 162 sentenças proferidas na Operação Lava-Jato. Pior: boa parte delas podem ser alcançadas pela prescrição já que os autos voltam ao estágio da instrução inicial. Ou seja, muitos tubarões podem ficar livres da cadeia apenas pela ação do tempo. Bingo!!

O entendimento firmado pelo STF foi no sentido de que o réu delatado deverá ser o último a falar no processo. Isso não ocorreu na maior parte das sentenças proferidas. Eu fico cá pensando: mas esses mesmos réus não tiveram a oportunidade de falar o que queriam nos infindáveis recursos que moveram logo após  a sentença condenatória? Não se trata de apenas uma filigrana jurídica?? E o Princípio da Instrumentalidade das Formas onde é que fica?? Será que, realmente, há necessidade de voltar no tempo e apagar o que já foi arduamente escrito?? E bota árduo nisso!! Foi difícil, muito difícil, colocar esse povo todo na cadeia!! Haja noites mal dormidas!! Haja desgaste emocional!! Haja criatividade para não cair nas armadilhas processuais e se desviar das brechas legais!!

Mas... manda quem pode!! Obedece quem tem juízo!!

Reescrevo aqui o que disse em minha rede social: "Sinais estão sendo dados. Basta interpretá-los. Ontem foi a derrubada dos vetos presidenciais; hoje uma decisão que fere de morte algo tão caro para a maioria dos brasileiros (a Operação Lava-Jato). Amanhã, o que será??? Algo está errado com a democracia brasileira ou, como prefiro, com a democracia à brasileira. Eu, sinceramente, gostaria que tivéssemos a força dos protestos de Hong Kong. No mínimo, este País deveria ser tomado por protestos nas ruas exigindo respeito das autoridades constituídas. Aliás, não há como respeitá-las. Roubar, matar e destruir continua valendo a pena neste País, com as bênçãos de quem carrega sobre os ombros o dever de lutar contra o mar de lama que tomou conta do setor público nacional.

Vigora no Brasil a ditadura do crime. Não, senhores, a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e, isto não é democracia. Foi para isso que lutamos tanto por liberdade de expressão??? Serve qualquer argumento??? Mesmo aquele que nos oprime, nos humilha e nos aniquila???

Como brasileiro, só me resta o luto"