O conceito de
lançamento da receita orçamentária (lançamento de natureza financeira),
referido no art. 53 da Lei 4.320/64 (ato da repartição competente, que verifica
a procedência do crédito fiscal e a pessoa que lhe é devedora e inscreve o
débito desta), é comumente associado ao lançamento tributário, previsto no art.
142 do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66): procedimento administrativo que verifica a ocorrência do fato gerador
da obrigação correspondente, determina a matéria tributável, calcula o montante
do tributo devido, identifica o sujeito passivo e, sendo o caso, propõe a
aplicação da penalidade cabível. O próprio Manual de Contabilidade Aplicado
ao Setor Público faz essa associação
(tópico 3.5.2.1, MCASP, 6ª edição). Muito provavelmente também foi esse ponto
de vista que orientou a disposição de algumas contas no Plano de Contas
Aplicado ao Setor Público (PCASP), destinadas ao controle do crédito das
organizações públicas.
No PCASP da
Federação, a conta Créditos a Curto Prazo (1.1.2.0.0.00.00) possui seis
subdivisões: Créditos Tributários a Receber (1.1.2.1.0.00.00), Clientes (1.1.2.2.0.00.00),
Créditos de Transferências a Receber (1.1.2.3.0.00.00), Empréstimos e
Financiamentos Concedidos (1.1.2.4.0.00.00), Dívida Ativa Tributária (1.1.2.5.0.00.00),
Dívida Ativa não Tributária (1.1.2.6.0.00.00). Note-se o destaque dado pelo Plano
para o crédito tributário, em detrimento dos demais créditos da Fazenda Pública
que, aliás, representa em muitos entes federativos a maior fatia dos créditos
de curto prazo. A nosso ver, o mais lógico seria particionar os Créditos a
Curto Prazo em dois grandes grupos de créditos: os Créditos Tributários (1.1.2.1.0.00.00)
e os Créditos não Tributários (1.1.2.2.0.00.00), alocando-se, a partir desses dois troncos, as
respectivas contas representativas de cada natureza de crédito em grau mais
analítico.
Discussões à
parte, não podemos perder de vista que, muito embora os conceitos
referidos em ambas as legislações se comuniquem (uma vez que o pano de fundo é
o mesmo), a definição referida no art. 53 da Lei 4.320/64 é muito mais
abrangente que aquela abrigada no art. 142 do CTN. Esta, dirige-se ao crédito
tributário; aquela, ao crédito financeiro, sabidamente de contornos muito mais
amplos e de conteúdo mais abrangente. O crédito financeiro contém o crédito tributário. Este está contido naquele. Essa tese é reforçada pelo fato de a
legislação tributária ser um ramo da legislação financeira. Aqui, temos o
gênero; ali, a espécie. Postos nesses termos, não há como tomarmos o lançamento
tributário como sinônimo do lançamento de natureza financeira. Todo lançamento
tributário corresponde, de fato, a um lançamento de natureza financeira, mas a
recíproca não é verdadeira. Com efeito, o crédito fiscal não se resume ao
crédito tributário. Este representa apenas uma parcela daquele. Em decorrência,
há créditos de natureza financeira que não são de natureza tributária. A própria
Lei 4.320/64 sutilmente fez essa distinção ao se referir à dívida ativa. Distinguiu
duas modalidades de dívidas: a tributária e a não tributária (art. 39). Conquanto
ambas sejam créditos da Fazenda Pública, a primeira possui raiz nas rendas
provenientes dos impostos, taxas e contribuições de melhoria; enquanto a última
tem origem nas demais categorias de ingressos públicos (receitas de
contribuição, patrimonial, industrial, agropecuária, etc.). Não resta espaço
para tomarmos o lançamento tributário como sinônimo do lançamento financeiro. Enquanto
o art. 142 do CTN alude tão-somente ao lançamento tributário, a referência
feita no art. 53 da Lei 4.320/64 é muito mais abrangente, dirigindo-se a toda e
qualquer espécie de lançamento, tributário ou não.
E quais são as
transações do setor público que devem ser objeto do lançamento de natureza
financeira? Quem responde a esse questionamento é o art. 52 da Lei 4.320/64: São objeto de lançamento os impostos diretos
e quaisquer outras rendas com vencimento determinado em lei, regulamento ou contrato. Ou seja, tanto os créditos tributários quando os créditos não tributários serão objeto de lançamento. Vê-se, por aí, a abrangência da legislação financeira. Dois anos antes da edição do CTN ela já fazia referência aos créditos tributários. E não poderia ser diferente dada, como vimos, a sua maior abrangência no tratamento da atividade financeira estatal. O que fez o CTN dois anos depois foi detalhar melhor o conceito, lapidando-o, já que se tratava (como também na atualidade) de uma legislação mais específica. Analisemos brevemente esse dispositivo.
O conteúdo é
taxativo: são objeto de lançamento
(...). Não há meio termo. O lançamento tem que ser feito. É um imperativo
legislativo. Não há como recusar-lhe a aplicação. A ordem é dirigida tanto ao contador público quanto ao servidor das unidades tributárias.
Em seguida, o
dispositivo determina qual o universo de incidência do lançamento (de natureza
financeira): os impostos diretos e
quaisquer outras rendas com vencimento determinado em lei, regulamento ou contrato.
Os impostos
diretos são aqueles que recaem diretamente sobre a riqueza estática, isto é,
enquanto não movimentados. É a hipótese do imposto sobre a renda e proventos de
qualquer natureza, do imposto predial e territorial urbano, do imposto
territorial rural e do IPVA. Claramente o dispositivo faz referência a
elementos tributários representados aqui pelos impostos. Mas sabemos que os
impostos não são constituídos unicamente pelos tributos direitos. Convivem com
eles os impostos indiretos, incidentes sobre a riqueza em circulação (ICMS,
ISSQN, ITBI, etc.). Ao lado deles há, ainda, as taxas e as contribuições de
melhoria. Portanto, qualquer que seja a renda tributária, desde que possua
vencimento determinado em lei, regulamento ou contrato deverá ela ser objeto de
lançamento (tributário). E sabemos que a carga tributária possui data para ser
recolhida pelas pessoas físicas e jurídicas. Ela ocorre, normalmente, no mês
subsequente à ocorrência do fato gerador. Alguns outros tributos, como o IPTU e
o IPVA, cobrados uma única vez por ano, são encaminhados para pagamento único
ou parcelado, com datas pré-estabelecidas. Serão, portanto, objeto de
lançamento tributário (e de natureza financeira).
Todavia, o
dispositivo não se referiu apenas às arrecadações de natureza tributária. Sua
concepção foi muito mais ampla. Abrigou toda e qualquer renda (cujo vencimento
fosse determinado em lei, regulamento ou contrato). E quais são essas rendas?
Vamos a algumas exemplificações.
- Rendas provenientes de autorizações de uso
de bem público: A autorização
constitui ato administrativo unilateral, discricionário e precário
pelo qual a Administração faculta ao particular o uso privativo de bem público,
o desempenho de atividade material, ou a prática de ato que, sem esse
consentimento, seriam legalmente proibidos” (Maria Sylvia Zanella di Pietro, Direito
Administrativo, Editora Atlas, São Paulo, 2000, pp. 211. É comum os órgãos públicos cederem espaços de
sua sede para lá os particulares instalarem cantinas e restaurantes, a fim de
atender às necessidades de seus servidores. A relação é regulada mediante um
contrato onde são postos as obrigações/direitos das partes contratantes. Pois
bem. Caso o poder público cobre algum percentual de tais estabelecimentos
(calculados sobre o faturamento ou outro parâmetro), tais receitas terão de ser
recolhidas aos cofres públicos em data pré-determinada, a cada mês. Note-se que
se trata de renda com vencimento fixado em contrato sujeito, portanto, ao
lançamento de natureza financeira (não tributário). Com efeito, caberá ao
contador público registrá-lo na contabilidade do órgão contratante logo no
início do ano a título de créditos a receber. Mês a mês, na medida em que tais
rendas forem sendo pagas, haverá a competente baixa do crédito em contrapartida
com a conta Caixa e Equivalente de Caixa.
- Rendas provenientes de taxas de ocupação,
foros e laudêmios: todas são rendas patrimoniais, isto é, de natureza não
tributária. Correspondem a receitas patrimoniais imobiliárias. Na União, são
administradas pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU). Segundo a SPU o Laudêmio é uma taxa a ser paga à União quando de uma
transação com escritura definitiva de compra e venda, em terrenos de
marinha. Os terrenos de marinha são caracterizados pelo Decreto federal
9.760/46: são terrenos de marinha em uma profundidade de 33 metros, medidos
horizontalmente para a parte da terra, da posição da linha da preamar-média de
1.831: a) Os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e
lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; b) Os que contornam as
ilhas, situados em zonas onde se faça sentir a influência das marés. Há
incidência do Laudêmio quando há transferência desses bens localizados nos
terrenos de marinha. O foro é o que se paga à União por não se ter o domínio
pleno do imóvel enquanto a Taxa de
Ocupação refere-se a um direito precário sobre um imóvel e caracterizado
pela existência de benfeitorias. Pois bem. Anualmente a União cobra os foros e
as taxas de ocupação. O pagamento poderá ser feito por intermédio de parcela
única ou dividido em mais de uma parcela, semelhantemente ao que ocorre com o
IPTU. Note-se que tais rendas também possuem vencimentos pré-fixados. Todas são
reguladas pelo Decreto-Lei 2.398/87. O art. 2º desse normativo determina que o Ministro da Fazenda, mediante portaria, estabelecerá
os prazos para o recolhimento de foros e taxas de ocupação relativos a terrenos
da União, podendo autorizar o parcelamento em até oito cotas mensais.
Foi a hipótese da Portaria n. 127, de 23 de abril de 2014, que disciplinou a
cobrança dos foros e taxas de ocupação naquele ano. Com efeito, também aqui
como ali, a renda proveniente de tais institutos também deverão ser objeto de
lançamento pela contabilidade (seguindo o lançamento de natureza financeira).
- Rendas provenientes de aluguéis: também
são rendas que ingressam periodicamente nos cofres públicos sujeitas, portanto,
a vencimento fixado em leis, regulamentos ou contratos. Caso existam rendas
provenientes dessa fonte de recursos também deverão ser objeto do lançamento
contábil à maneira das demais.
-
Rendas provenientes de aplicações de
recursos em fundos de investimentos: é comum as organizações públicas
aplicarem recursos no sistema financeira, a fim de garantir algum rendimento.
Os bancos creditam o valor dos rendimentos periodicamente. A contabilidade
deverá fazer o registro antecipado do crédito a receber baixando-o sempre que a
instituição financeira creditar o valor correspondente nas disponibilidades do
órgão.
Essas
são algumas das rendas que poderão ser objeto de registro contábil. Todas de
natureza não tributária, mas que se
enquadram perfeitamente nas condições descritas no art. 52 da Lei 4.320/64. E
qual o parâmetro que a Contabilidade Aplicada ao Setor Público toma para fazer
o registro contábil do crédito da fazenda pública? O lançamento de natureza
financeira ou o lançamento de natureza tributária? Conforme referido na inicial
desses nossos comentários, historicamente falando, a doutrina contábil sempre
se orientou pelo lançamento de natureza tributária para proceder à
contabilização do lançamento (da receita orçamentária). O problema é que essa
conduta acabou gerando uma grande lacuna na contabilidade dos entes federativos
já que, consoante comentado, muitas rendas não tributárias deixaram de ser
escrituradas como créditos a receber, a exemplo das rendas por nós referidas
nesses nossos comentários (rendas provenientes de autorizações de uso de bem
público, rendas provenientes de taxas de ocupação, foros e laudêmios, rendas
provenientes de aluguéis, rendas provenientes de aplicações de recursos em
fundos de investimentos). Em relação
a tais categorias de créditos da Fazenda Pública a Contabilidade governamental
ainda pratica o regime de caixa: somente quando ingressam nas disponibilidades
é que são objeto de registro contábil. Não há (como ocorre com as rendas
tributárias, notadamente os impostos) o registro prévio do crédito da Fazenda
Pública (regime de Competência). Se fosse aplicada a mesma metodologia de tratamento,
o registro contábil do Crédito da Fazenda Pública relativo às rendas provenientes
das autorizações de uso de bem público seria o seguinte:
D –
Créditos de Natureza não Tributária (Classe 1)
C –
Variações Patrimoniais Aumentativas (Classe 4)
Posteriormente,
ao longo do exercício, na medida em que
o autorizatário fosse quitando o seu débito para com o órgão contratante,
o lançamento seria:
D –
Caixa e Equivalente de Caixa (Classe 1)
C –
Créditos de Natureza não Tributária (Classe 1)
Esperamos que num
futuro próximo a falha seja corrigida, a fim de que a Contabilidade Aplicada ao
Setor Pública efetivamente contribua para a geração de informações fidedignas no
setor governamental.