(*) Texto publicado na Coluna Gestão do autor no Fato Amazônico (www.fatoamazonico.com.br)
Há um debate que volta e
meia comparece nas discussões envolvendo os tribunais de contas: até que ponto
eles são competentes para fiscalizarem questões ligadas ao meio ambiente? Como
todo conteúdo que ainda não foi suficientemente amadurecido nas rodas de
debate, quase sempre o tema tem suscitado pontos de vista diversos, regados,
algumas vezes, a debates mais ácidos.
Uns entendem falecer
competência aos tribunais de contas para proporem medidas relacionadas a
infrações ambientais. Outros, contudo, admitem essa competência. Filio-me entre
os últimos, ainda que com alguns regramentos.
O art. 70 da Constituição
Federal assim dispõe: A fiscalização contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da
administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade,
economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida
pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle
interno de cada Poder
(grifei).
Mais adiante, em seu art. 225 ela pontua: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as
presentes e futuras gerações (grifei).
Conjugando-se os dois dispositivos, não há como não admitir o raio de incidência
da ação fiscalizadora dos tribunais de contas sobre matérias ligadas a questões
ambientais. Essa conclusão não provém, portanto, unicamente de conjecturas de
ordem doutrinária. Antes, encontra arrimo no próprio legislador constituinte originário, que
assim dispôs. Trata-se, portanto, de concepção alicerçada no Texto Constitucional
federal.
Por outro lado, o inciso I do art. 99 do Código Civil Brasileiro enumera
os bens de uso comum do povo – bens de uso coletivo por excelência – como integrantes
dos bens públicos: São bens públicos: I –
os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças.
Antes dele, o art. 98 declara: São
públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de
direito público interno (...) (grifei).
A lógica jurídica é
cristalina: premissa maior: todos os bens de uso comum do povo pertencem às
pessoas jurídicas de direito público interno. Premissa menor: o meio ambiente
ecologicamente equilibrado é um bem de uso comum do povo. Conclusão: o meio
ambiente ecologicamente equilibrado pertence às pessoas de direito público interno.
Sendo assim, não há como
não conceber que o meio ambiente integra o acervo patrimonial de sobreditas pessoas
jurídicas. Ora, se ele faz parte do acervo patrimonial público não faz sentido
aparta-lo da ação fiscalizadora dos tribunais de contas, uma vez que o art. 70
do Texto Constitucional federal distingue a fiscalização patrimonial como um dos
canais por meio dos quais a fiscalização dos órgãos de controle externo se
manifesta.
Não vejo como extrair
outra conclusão que não seja essa, até por questões humanitárias.
Façamos um raciocínio
simples.
Todos nós sabemos que as praças são contadas como bens de uso comum do povo. Não há dúvida
também que elas integram o acervo patrimonial dos entes federativos. De dez
anos para cá, inclusive, as normas que regem a escrituração contábil no setor
público passaram a admitir os bens de uso comum como passíveis de contabilização.
Assim, na atualidade, o dever de registrar contabilmente uma mesa ou um veículo
pertencente às instituições governamentais se estende também às praças
públicas. Não há qualquer diferença de tratamento contábil entre eles. Suas
raízes são exatamente as mesmas: ambos integram o patrimônio governamental. Ora,
se uma simples praça se sujeita à ação fiscalizadora do tribunal, qual o motivo,
então, para retirar de sua fiscalização o meio ambiente? Não são ambos bens de
uso comum do povo? Ambos não contribuem – cada um a sua maneira – para a vida
sadia? Para a qualidade de vida? Para a manutenção da vida? Os dois não estão a
serviço da coletividade? Indubitavelmente que sim. Uma praça pública não é
apenas um adorno urbano. Ela é, essencialmente, como se fosse um balão de
oxigênio a renovar o ar dos aglomerados urbanos, tão comprometido na atualidade
pelo dióxido de carbono. A mesmíssima função desempenha o meio ambiente. Aliás,
com incontáveis vantagens!!
É bem verdade que a atividade
fiscalizadora das cortes de contas não é plena em alguns redutos. Em algumas
oportunidades o Judiciário já censurou condutas dos tribunais de contas que
tangenciaram licenças ambientais concedidas pelos órgãos de proteção ambiental
por entender que, em tais casos, a competência fiscalizatória dos órgãos de
controle externo deve ser suprimida, uma vez que o órgão de proteção ambiental
se encontrava no exercício pleno de seu poder de política. Isso ocorreu em um
embate envolvendo o Tribunal de Contas do Estado do Amazonas e o Tribunal de
Justiça do Estado do Amazonas. Longe de dizer, entretanto, que, a partir desse
entendimento, o Judiciário amazonense tenha afastado a ação fiscalizadora do
Tribunal em questões ligadas ao meio ambiente. Em absoluto. O que restou claro
na referida apreciação judicial é que no exercício do poder de polícia pelos
órgãos de proteção ambiental não há como
se conceber condutas fiscalizadoras concorrentes. Nada mais lógico. Dizer o
contrário é esvaziar a competência do órgão ambiental. Mas daí entender que
essa exclusividade alcança outros terrenos é afrontar disposições alicerçadas pelo
legislador constituinte originário.
Com efeito, em matéria
ambiental, o exercício das competências enumeradas nos incisos I a XI do art.
71 da Constituição federal pelos tribunais de contas é pleno. Dentre essas,
destaque-se o poder-dever de “assinar
prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato
cumprimento da lei, se verificada ilegalidade” (inciso IX); e “representar
ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados” (inciso XI).
Em síntese, resta claro que matérias ambientais se sujeitam in totum à ação fiscalizadora dos
tribunais de contas. Essa dimensão se insere no escopo do O QUE as cortes de
contas devem e podem fiscalizar. Agora, COMO essa fiscalização se opera é que
em dadas situações deve respeitar certos limites. É preciso ficar claro,
todavia, que a censura realizada pelo judiciário quanto à determinada forma de fiscalização
adotada incide APENAS sobre a modalidade censurada. Não sobre todas elas. A meu
ver, todas as ações fiscalizatórias conduzidas pelos tribunais de contas que,
de alguma forma, SOMEM e CONSOLIDEM esforços para a obtenção de um ambiente
ecologicamente equilibrado – desde que respeite critérios de razoabilidade – devem
ser recebidas como altamente positivas pois, no dizer do legislador
constituinte originário “contribuem para a sadia qualidade da vida”.
É como penso.
Alipio Reis Firmo Filho