(*) Texto publicado no Fato Amazônico, na Coluna do Autor (www.fatoamazonico.com.br)
Neste mês de outubro,
mais especificamente no último dia 05, a
Carta Magna completou 32 anos. Parece que foi ontem que assistíamos pela
televisão a solenidade de sua promulgação, por meio das palavras proferidas
pelo Dr. Ulisses Guimarães. Lá se vão um terço de século. De lá para cá muita coisa aconteceu. O mundo
mudou. O Brasil mudou. Os valores mudaram. Os costumes também.
A Carta de 1988 representou
o anseio por liberdade de uma nação que, por longos anos, sofrera grandes
limitações e tolhimentos por conta do regime militar então vigente. A liberdade
pessoal tornou-se necessidade de primeira grandeza e, com ele, inúmeros anseios.
Mencione-se, dentre os mais importantes, a vontade de eleger seus próprios
governantes, tendo por premissa a autonomia da vontade.
Nada obstante os
incontáveis avanços, não devemos nos esquecer que tudo sofre a ação do tempo.
Mesmo as coisas inanimadas perdem seu vigor. Deixe uma casa fechada por 30 anos
e veja o que acontece. O tempo é quem nos governa. Seu movimento é contínuo e
permanente. Nada o detém. Assim como nada pode se opor ao curso de um rio que
percorre um longo caminho até desaguar no oceano. Assim é o tempo. Assim também
a norma jurídica.
É preciso ter em conta
que o regime constitucional inaugurado há 32 anos atrás refletiu os valores de
seu tempo. Valores que a sociedade os tinha como “a menina de seus olhos”. Por
isso eram muito caros à sociedade brasileira da época. Muitos desses valores
foram recolhidos pelo legislador constituinte e incorporados na Carta de 1988.
A presunção de inocência, o direito ao voto e a filiação partidária obrigatória
foram apenas alguns, dentre tantos outros dispositivos constitucionais, que
consolidavam um regime constitucional que acabara de nascer e que precisava ser
nutrido, a fim de que não corresse o risco de sucumbir. Disso resultou uma
Constituição rígida. Difícil de ser alterada. É como se pretendêssemos que os
compartimentos constitucionais permanecessem para sempre, sujeita a uma ou
outra mudança, mas nada que ameaçasse sua estrutura. No fundo, essa maneira de
gestar nosso modelo constitucional parece deixar transparecer um certo medo
coletivo ou alguma insegurança. Eis uma ótima pauta de pesquisa para a
Antropologia.
Mas, como disse, tudo
envelhece. Para continuar sintonizada com seus súditos uma Constituição precisa
caminhar com eles de mãos entrelaçadas. Se não for assim, haverá rupturas que
darão origem a distanciamentos que, por sua vez, resultarão em queixas e
lamentações.
Creio que estamos
passando justamente por isso.
Muitos dos valores
cristalizados na Carta Magna de 1988 trouxe consigo alguns efeitos colaterais
que há época não nos foi possível cogitar. Nada mais natural. Estávamos em “lua
de mel”. Muitas janelas abertas para a liberdade eram, na verdade,
corredores que nos conduziam, na
verdade, a redutos hermeticamente fechados que, com o passar do tempo,
começaram a nos aprisionar. É como se fossem uma pedra no sapato. Por outro
lado, nesse tempo, a tábua de valores da sociedade brasileira mudou
profundamente. O conceito de sociedade politicamente desenvolvida do presente não
guarda similitude com muitas colunas plantadas no passado. Por isso muitos
desses valores começaram a se digladiar com os valores cristalizados há três
décadas atrás. Como sair desse imbróglio? Só pelo “jus sperniando”.
Alguns defendem que
caberia às emendas constitucionais atualizar a tábua de valores cristalizada no
Texto Constitucional colocando-a em sintonia com os valores sociais. Ledo
engano. Não aconteceu assim. A Constituição sofreu, sim, várias alterações, mas
nenhuma delas conseguiu dar a resposta que a sociedade esperava para superar
alguns nódulos malignos que começaram a aparecer com o decorrer do tempo.
Talvez a mais evidente na
atualidade seja a tal da prisão em segunda instância. A Constituição cidadã
proclamou a presunção da inocência até o trânsito em julgado de uma sentença
condenatória. Contudo, diante de tantas bizarrices jurídicas que temos
testemunhado, tornou-se muito difícil para significativa parcela da sociedade
brasileira conviver com referida disposição constitucional. O que temos
assistido são verdadeiros gatunos que se escondem por detrás da tal presunção
de inocência para continuar cometendo seus delitos.
E o que falar da filiação
partidária obrigatória? Também já não é possível convivermos com ela. Perdemos
excelentes postulantes a cargos eletivos justamente porque são preteridos por
muitos partidos políticos já na porta de entrada. Precisamos de uma Carta de Alforria!!! Aliás, já passou do
tempo.
Não é possível
convivermos mais com candidatos a cargos eletivos andando com o pires na mão
para mendigar o apoio partidário e, assim, emplacar suas candidaturas, muitas
vezes, em troca de apoios e renúncias nada republicanos.
E quanto ao voto
obrigatório? Será que também não chegou a hora de quebrarmos mais essa
barreira? Que democracia é essa que se comporta, algumas vezes, como verdadeira
ditadura branca? Nossa queixa do regime militar não nasceu justamente de
inconformismos como este? Pois bem. Por que então aceita-lo num regime
democrático? Quem é o dono do poder é o povo brasileiro! Ao menos, assim
proclama a Constituição cidadã já na sua porta de entrada. Ora, se é assim, porque não deixar o titular
do poder à vontade para decidir ou não pelo voto? Não é assim que procedem os
grandes modelos democráticos no mundo? Então. Por que não nos nivelarmos por
cima?
Esses são apenas alguns
dos muitos pontos que precisam ser revistos no Texto Constitucional. Há muitos
outros por lá. Não é difícil identifica-los. Não precisa nem mesmo enxerga-los
pelas lentes de suas disposições. Basta consultarmos as redes sociais que logo
os encontraremos.
Quando a norma jurídica
começa a causar desconfortos sociais isso significa que algo vai mal.
Guardadas as devidas
proporções, a patologia jurídica é muito semelhante à patologia biológica. Quando
um indivíduo apresenta quadro febril significa que agentes patológicos estão
dentro de seu organismo a ameaça-lhe a vida. De igual modo o ordenamento
jurídico.
Se existe embate entre os
valores sociais e os valores cristalizados na norma jurídica, seja ela
constitucional ou não, isso significa que há também um perigoso foco de
infecção que precisa ser combatido.
Do contrário, a
desestabilização política e social será o inevitável desfecho.
Em suma, tomando por
referência o quadro geral de insatisfação que tomou e tem tomado conta de
significativa parcela da sociedade brasileira, não há outra solução senão
calibrar o modelo constitucional vigente, aparando suas arestas e colocando-o
em perfeita sintonia com a tábua de valores sociais então vigentes.
Direito sem justiça é
qualquer outra coisa, mas, indubitavelmente, não é Direito.
Alipio
Reis Firmo Filho
Conselheiro
Substituto – TCE/AM e Doutorando em Gestão