(*) Artigo publicado na minha coluna Gestão no Fato Amazônico (www.fatoamazonico.com)
Imagine uma família que
por longos anos – pensemos algo em torno de 10, 15 ou 20 anos – conviveu com a
falta de regras básicas de convivência em grupo. Nessa família, durante esses
anos, não houve respeito, disciplina ou moralidade. Não houve regras ou limites
para qualquer coisa. Todos podiam fazer tudo, sem barreiras. Predominava a vontade pessoal. Ela era intocável.
Inatingível. Interferência alheia? Nem pensar!! Durante aqueles anos, nunca se falou em abusos
ou excessos, uma vez que tudo era permitido.
Os filhos chegavam e saiam
de casa a hora que quisessem, inclusive os menores de idade. Não precisavam dar
nenhuma satisfação aos pais. Dada a liberdade que gozavam, também frequentavam a escola quando bem
entendessem. Tinham o privilégio de escolher o dia para estudar. Se tivessem
vontade de faltar às aulas, problema algum haveria. Nessas condições, as notas
nos exames pouco importavam. Não havia cobrança de bons desempenhos, de bom
comportamento. Disciplina e respeito para com os professores e colegas de escola,
ficavam para o segundo plano. Eles
sempre tinham o aval dos pais. “Sempre respeitamos o direito de livre
arbitramento deles”, diziam os pais, com certo orgulho até.
O lazer também seguia a
mesma linha. Podiam frequentar qualquer lugar, sem peias ou regulamentos; acompanhar-se
de qualquer pessoa e tomar qualquer bebida. Fumar ou não fumar dependia apenas
de uma decisão pessoal. Isso incluía drogas não lícitas. Não importava o que os
pais pensassem ou deixassem de pensar. Eles, aliás, referendavam tudo o que os
filhos faziam. Sempre pautando-se pela
plena liberdade de consciência, pela livre conduta e pela livre expressão do
pensamento. Algo
parecido com a tal Casa da Mãe Joana. Segundo a Wilkipédia, a expressão refere-se a lugar ou situação onde vale
tudo, sem ordem, onde predomina a confusão, a balburdia e a desorganização.
Eu poderia prosseguir no
detalhamento do lifestyle dessa
família, mas acredito que não será preciso.
As matizes aqui postas já nos dão uma ideia de como os integrantes dessa
família fictícia se relacionavam entre si e com o mundo exterior. Evidentemente
que aqui e ali houve uma certa dose de exagero na narrativa. Mas nada que
comprometa o cenário que desejei retratar.
Mudemos agora de trajetória.
Admitamos que os pais decidissem
colocar regras nessa família. Não deixar as coisas tão soltas. Chegaram à
conclusão que o melhor dos mundos não é todo mundo fazer o que deseja. Respeito
e civilidade são importantes para a boa convivência. Funcionam como
fertilizantes. Decerto que a tarefa não será das mais fáceis. É como domar um
cavalo selvagem ou por o pé no freio de um veículo desgovernado. Haverá
resistências. Muitas resistências. Recorrendo à gíria popular, se não houver
pulso, estará fadada ao insucesso.
O maior problema será definir
fronteiras. Fixar linhas divisórias onde elas nunca existiram. Estabelecer
padrões de conduta outrora inimagináveis. Certamente que mudanças dessa
envergadura promoverão choques violentos. Afinal, são condutas que perduram por
anos a fio. Já estão enraizadas no seio familiar. Fazem parte da rotina. É lei
entre as partes.
É mais ou menos essa a
fase que estamos atravessando no Brasil. Por anos a fio, acostumamo-nos ao que
era bom. Ou melhor, àquilo que julgávamos bom. Durante esse período, práticas
foram consolidadas em nossa rotina como se dela fizessem parte. Isso ocorreu em
vários redutos.
É fato: o Estado
brasileiro é caro e pouco eficiente (para usar um eufemismo). Essa questão
começou a chamar a atenção dos súditos, isto é, daqueles que carregam o peso
desse Titã. Gasta-se muito, mas, principalmente, gastamos muito mal. Não temos
a cultura do cuidado, do zelo, do balanceamento entre o custo e o benefício. É muito
rarefeito no setor governamental o empreendedorismo. Planejamentos estratégicos
ficam na gaveta ou são confeccionados apenas para satisfazer a uma exigência
legal. Isso acontece também com muitos outros documentos públicos, como planos,
programas e políticas públicas. O depoimento estarrecedor de Sérgio Cabral é
uma prova cabal disso. Admitiu, sem meias palavras, que se elegeu unicamente
para assaltar os cofres públicos. Como ele, tantos outros. Temos que banir essa
corja de bandidos de nosso meio. Fazer uma limpeza. São lobos em pele de
cordeiro que nada fazem e nunca fizeram pelo País.
Quer outro exemplo? Passemos
em revista a realização da Copa do Mundo de 2014. Lá colheremos outros preciosos
ensinamentos. Até hoje (e por muitos bons anos ainda) contabilizaremos os
prejuízos. Obras faraônicas. Caras. Sem quase nenhuma utilidade. A Arena da
Amazônia, por exemplo, consome mensalmente em torno de R$ 600 a R$ 700 mil
reais de nosso precioso e mingado dinheiro para mantê-la. O custo-benefício?
Não preciso comentar. Todos nós já sabemos. E como ela, tantas outras espalhadas por esse
País continental. Já pararam para pensar quanto desperdiçamos em obras
inacabadas? Dinheiro que foi para o ralo, a serviço de uns poucos; guardado,
muito bem guardado em malas cheinhas de dinheiro.
Mas ao contrário do que
pensamos o problema do setor público brasileiro não é exatamente o fato de ser
caro. O problema é outro. Os serviços públicos prestados no Brasil são, com
raríssimas exceções, de baixíssima qualidade (para usar um eufemismo). Saúde,
educação e segurança pública são os mais criticados. Alemanha e Canadá também dão
boas mordidas na renda de seus súditos. Possuem, como nós, altas cargas
tributárias. A diferença é que lá o peso da carga é mais do que compensado pela
qualidade dos serviços prestados. Lá há compromisso com o cidadão.
Sou servidor público,
ingressei por concurso público em todos os cargos por onde passei, assim como no
que estou atualmente. Diariamente, testemunho o dinheiro público sendo jogado
fora, privilegiando alguns em detrimento de outros. E não é somente o alto
escalão que adota essa prática. Isso acontece em todos os escalões
governamentais. Consulte-se, por exemplo, o teor da Emenda Constitucional nº
47/2005, responsável por incluir o § 12 no art. 37 da Constituição Federal, e
tirem suas próprias conclusões. Veja o antes e o depois dessa Emenda
constitucional. O impacto nos gastos de pessoal no setor público, mormente nos estados
que a adotaram. No ano passado foram pelo menos sete unidades federativas
estaduais a decretarem estado de calamidade financeira? Coincidência?
São privilégios que nos
acostumamos a conviver. Privilégios transvestidos de “direito adquirido”,
muitos, aliás, ainda sem preencherem os requisitos legais. Vejam só. Lutamos
por algo que ainda nem faz parte de nosso patrimônio jurídico. Como se já
fizesse. Não queremos que ninguém mude o curso da trajetória, pois o limite da linha
de chegada já fora pintada por nós mesmos, muito antes de nós a alcançarmos. Se
alguém afastar um pouco mais a linha de chegada, obrigando-nos a correr um
pouco mais, é um Deus nos acuda!! Xingam, gritam, deturpam!! Como disse uma
amiga minha: “no Brasil, somos individualistas. Ninguém tem espírito do
coletivo. Se eu quero que algo melhore é para atender à minha casta e ponto
final”. O Brasil carece de gente comprometida com o público, com a coisa
pública.
É também como eu disse
certa vez numa rede social: nós, cidadãos brasileiros, queremos ter o que os
países de primeiro mundo entregam a seus cidadãos, mas não estamos dispostos a pagar
o preço. Tudo pode mudar, mas deixa meu pedaço comigo. Eis o retrato do Brasil
na atualidade. Vejam o que está acontecendo quando alguém ousa falar em Reforma
da Previdência no Brasil. São imediatamente devorados. Para o exercício de 2019 o déficit
previdenciário federal será de 303 bilhões de reais. Esse buraco será fechado
com recursos do orçamento fiscal. São 303 bilhões que poderiam ter outro
destino, como a construção de rodovias no País, fomentando a criação e a
circulação de riqueza.
Há debates acirrados que
colocam em dúvida esse déficit. Inclusive, há Relatório de Comissão no
Congresso Nacional que afirma não existir déficit algum. Que um dos vilões do
atual déficit previdenciário se chama Desvinculações da Receita da União, responsável
por desvincular 500 bilhões de reais da Previdência Social, no período de 2005
e 2014. De fato, a prevalecer esses
números, desaparece o déficit. Entretanto, para além do déficit (ou não
déficit) previdenciário, há outras questões importantes que precisamos enfrentar.
Existem distorções gravíssimas na própria legislação previdenciária que
precisam ser revistas e que, direta ou indiretamente, oneram os cofres públicos
previdenciários. Quer um exemplo? O abono previdenciário. Sou servidor público
e sou contra esse instituto. É uma fonte a menos que a previdência do setor
público deixará de contabilizar. Agora imagine quantos servidores públicos pelo
Brasil afora adquirem o direito à aposentadoria, mas optam por ficar no serviço
público estimulados, talvez, na maior parte das vezes, pelo tal do abono de
permanência. Para quem não sabe a coisa funciona mais ou menos assim: quem
reuni condições de se aposentar e prefere continuar trabalhando, deixa de
contribuir para a previdência do setor público. Outra forma de abonar é
compensando o valor descontado mediante um crédito no mesmo valor. Não estou
aqui fazendo coro contra os servidores públicos. Muito pelo contrário. Eu também
sou servidor público. O que ressalto é uma grande distorção nas contas públicas
que, a meu sentir, precisa ser revisto. Acontece que não queremos revê-lo, pois
isso mexe com o meu pedaço. É o tal do espírito de individualidade que vigora
neste País. Portanto, o problema não se
resume ao déficit previdenciário. Como disse anteriormente, o setor público
brasileiro gasta muito e também gasta muito mal. Se pretendemos mudar nossa
trajetória é preciso revermos o quadro que temos hoje. E aqui há várias frentes
para serem abertas. Do contrário, não iremos a lugar algum. Nem Bolsonaro, nem
Haddad, nem qualquer um que assuma o comando deste País vai mudar qualquer
coisa. Por um simples motivo: nós não queremos mudar. O pior cego é aquele que
não quer enxergar.
Acostumo-nos com um
Estado paternalista, que atende a todos os nossos desejos, sem limites, sem
peias ou regulamentos. Uma casa da mãe Joana.
Que Deus tenha misericórdia
de todos nós.
Alipio
Reis Firmo Filho
Conselheiro
Substituto – TCE/AM
Nenhum comentário:
Postar um comentário