(*) Texto publicado na Coluna Gestão, do autor, no Fato Amazônico (www.alipiofilho.blogspot.com)
A decisão de Fachin de
anular todos os atos do então juiz Sérgio Moro que condenaram o ex-presidente
Lula e que não estavam relacionados com os ilícitos da Petrobrás caiu como uma
bomba no cenário político brasileiro. Principalmente por ter devolvido os
direitos políticos ao ex-presidente, que agora figura como candidato nas
eleições para o Planalto em 2022. Fachin entendeu que as condenações de Lula
envolvendo o tríplex de Guarujá (SP), o sitio de Atibaia (SP) e o Instituto
Lula envolvem outros órgãos da administração pública o que, segundo ele, esvazia
a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, origem da Lava Jato. Reconheceu
que caberia a competência do julgamento de todos aqueles casos à Justiça Federal
do Distrito Federal à qual remeteu os autos para nova distribuição.
A primeira crítica que se
põe é: por que essa reviravolta agora? Por que essa decisão não foi tomada há mais
tempo? Arrisco um palpite: por causa das “provas” hackeadas do telefone celular
de Deltan Dallagnol. Aqui está talvez o principal estopim do imbróglio. Há dois anos atrás o site The Intercept
Brasil divulgou uma troca de mensagens entre o ex-juiz Sérgio Moro, Dallagnol e
outros procuradores. Há época o caso repercutiu no Brasil e no mundo. Lula, de
posse das mensagens, engrossou o coro de que não havia imparcialidade de Moro
nas condenações. A partir daí, um rio começou a se formar...e...se avolumar...
Mais recentemente, o
Ministro Lewandowski autorizou o ex-presidente Lula a acessar o conteúdo das
mensagens. Moro recorreu da decisão, mas a Ministra Rosa Weber a manteve. O
resultado foi que as mensagens hackeadas migraram para dentro da ação de Habeas
Corpus de Lula e, com ela, a discussão acerca da imparcialidade de Moro ganhou
corpo e coro na Segunda Turma do STF.
De tudo o que até aqui foi
dito, há ainda alguns desdobramentos que precisam ser considerados.
Primeiro, que a decisão
de Fachin é monocrática. Portanto, deverá ser ainda analisada pelo Pleno do STF
que poderá referendá-la ou não. A Procuradoria Geral da República já sinalizou
que irá recorrer da decisão. Portanto, podemos ter desdobramentos.
Segundo, muito embora os
simpatizantes e correligionários do ex-presidente Lula estejam alardeando aos quatro
cantos que finalmente a justiça foi cumprida e que restou evidente a inocência
de Lula, não é bem assim. É importante destacar que a decisão de Fachin não
adentrou no mérito das decisões de Moro. Nenhuma vírgula foi tirada. O conjunto
probatório continua lá. Em momento algum Fachin disse que as provas contra ele não
são robustas o suficiente para condená-lo. A decisão de Fachin alcança
tão-somente o curso processual. Não seu conteúdo. Portanto, é nesse contexto
que deve ser entendida a decisão de Fachin.
Terceiro, ao que tudo
indica, a decisão de Fachin visou, originariamente, dar uma sobrevida às condenações
da Lava-Jato. Não que Fachin deixasse de estar convencido das decisões tomadas por Moro, que resultaram nas
condenações de Lula. Lembrando que por diversas vezes o próprio STF referendou
tais decisões, inclusive, mantendo o petista preso, como a que ocorreu em junho
de 2019, por decisão da própria Segunda Turma. À época votaram mantendo a
prisão de Lula a Ministra Cármen Lúcia e Celso de Mello, juntamente com Fachin.
Além disso, o STJ negou vários pedidos do ex-presidente. Uma delas ocorreu em
novembro/2020 na qual sua Quinta Turma rejeitou um recurso por ele interposto no
caso do triplex de Guarujá (SP). Ou seja, a coisa já estava sedimentada, mas
veio a reviravolta.
Por meio de sua decisão,
Fachin ofereceu uma nova oportunidade de as decisões de Moro serem referendadas
por um outro Foro. Repito, não porque Fachin duvidasse das posições de Moro,
mas mais como estratégia processual, ante à ameaça que começou a se formar no
contexto das “provas” hackeadas. Com efeito, a redistribuição processual ao Foro
do Distrito Federal calaria a tese de suspeição contra Moro. Essa conclusão
parece estar reforçado pela atitude de Fachin no julgamento iniciado ontem pela
Segunda Turma do STF, em que se debatia o prosseguimento ou não do julgamento
pela Turma da imparcialidade de Moro nos processos da Lava-Jato. A tese de
Fachin pelo não prosseguimento recorreu justamente a sua decisão tomada no dia
anterior que anulou os atos do ex-juiz Sérgio Moro relacionados ao tríplex de Guarujá (SP), o sitio de Atibaia
(SP) e o Instituto Lula. Fachin sustentou a perda do objeto, mas foi vencido pelos
demais integrantes da Turma.
Discussões à parte, evidentemente
que o novo juiz poderá manter ou não o que Moro fez. Além disso, há também o
risco de prescrição dos ilícitos praticados pelo ex-presidente o que o
liberaria, em definitivo, para uma nova carreira política.
Outro ponto que merece
reflexão está relacionado à legitimidade das “provas” hackeadas. Afinal de
contas, elas realmente podem funcionar a favor do ex-presidente? Aqui, duas
verdades se contrapõem: uma formal e outra material.
Pela verdade formal, a
meu sentir, as mensagens hackeadas não poderiam servir de parâmetros para
decisões judiciais. O primeiro argumento nesse sentido encontra lastro no disposto
no inciso LVI, do art. 5º, da Carga Magna: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
Por provas ilícitas, entenda-se, aquelas colhidas mediante infrações legais/constitucionais.
Uma das mais comuns são as provas obtidas sem autorização judicial. Há pacífica
jurisprudência nesse sentido. Citemos aqui a decisão da 7ª Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça/RJ:
“Em agosto de 2017, a Polícia Rodoviária
Federal abordou dois homens em um veículo que ia de Cachoeira Paulista/RJ ao
Rio de Janeiro. Os homens informaram que estavam se dirigindo ao endereço de um
rapaz com o qual comprariam drogas.
Os policiais,
então, obtendo acesso ao WhatsApp de um dos homens abordados, sem autorização
judicial, localizaram o suspeito de tráfico de drogas e marcaram um encontro
entre ele e o rapaz abordado. Após isso, foi realizada uma ação da polícia
contra o rapaz, tendo sido encontrados drogas e dinheiro no interior de sua
residência. Após a ação da polícia, o morador da residência foi denunciado por
tráfico de drogas.
Ao analisar o
caso, o juízo de origem julgou a ação parcialmente procedente para condenar o
denunciado pelo crime de tráfico de drogas. A defesa do rapaz, então, apelou da
sentença, suscitando a nulidade das provas obtidas.
Ao analisar o
caso, o desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto divergiu do relator e
considerou que toda a ação policial foi derivada do acesso ilegal ao aplicativo
de mensagens WhatsApp do telefone que estava na posse da testemunha abordada
pelos policiais rodoviários.
Para o
magistrado, é evidentemente descabida a versão de que a testemunha teria
voluntariamente permitido o acesso dos policiais ao seu aparelho de celular,
ainda mais que, após acessar o conteúdo, os agentes fingiram se passar pela
testemunha, entraram em contato com um homem e marcaram o encontro com o
acusado.
"Diante
disso, a apreensão das drogas se deu tão somente em razão do acesso indevido às
mensagens no aparelho celular, que provocou a ida dos policiais à residência do
réu, não havendo contra ele, até então, qualquer investigação, tampouco mandado
de busca e apreensão que justificasse a busca realizada em sua residência."
Segundo o desembargador, o encontro entre a
testemunha e o acusado jamais teria ocorrido sem a troca de mensagens forjada e
manipulada pelos policiais rodoviários” (https://www.migalhas.com.br/quentes/317121/sao-nulas-provas-obtidas-no-whatsapp-por-policiais-sem-autorizacao-judicial)
Ou seja, a verdade formal
(ausência de autorização judicial para coleta de provas) se sobrepôs à verdade
material – drogas e dinheiro encontrados na residência do acusado. A referida
Câmara Criminal fundamentou sua decisão por infração ao inciso XII, art. 5º, do
Texto Constitucional: é inviolável o
sigilo (...) das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem
judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal. Fundamentou
ainda no disposto no art. 1º da Lei n. 9.296/1996, que regulamentou aquele
dispositivo constitucional: a interceptação de comunicações telefônicas, de
qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução
processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz
competente da ação principal, sob segredo de justiça.
Ou seja, aplicando-se
esse linha de raciocínio às mensagens hackeadas, não haveria como recorrer a
elas para sustentar decisões judiciais ou
impulsos processuais. A forma processual não foi observada, qual seja, a prévia
autorização judicial para obtê-las. Ademais, restaria também infringido o
disposto no art. 10 da referida Lei, uma vez que a coleta de informações
telefônicas sem autorização judicial constitui crime: constitui crime realizar interceptação de comunicações
telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar
segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados
em lei.
Portanto, a fatídica decisão da Segunda Câmara do STF, em continuar com
o julgamento da imparcialidade de Moro, incorre em flagrante e explícita ilegalidade,
pois recorre a uma tipologia penal (crime) para discutir um suposto crime
cometido pelo ex-juiz. A dúvida: até que ponto a decisão é legítima? Onde estão
mesmo os limites para as decisões judiciais? Vale qualquer coisa? Mesmo se
amparadas em tipologias penais? Os simpatizantes do ex-presidente Lula colocam
em xeque o devido processo legal, porém, também não dão às costas a ele quando
pugnam pela introdução de provas colhidas ilicitamente num processo judicial???
Não me soa como razoável tudo isso. Justiça para ser boa tem que começar
de casa. Respeitar seus próprios postulados e limites. Se não for assim, é
qualquer coisa, menos justiça.
A conclusão da Câmara Criminal
do TJ/RJ se ampara em jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSO PENAL. HABEAS
CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO
PREVENTIVA. LEGALIDADE. PERDA DO OBJETO. LIBERDADE PROVISÓRIA CONCEDIDA.
NULIDADE PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA PERSECUÇÃO PENAL. SUPRESSÃO
DE INSTÂNCIA. PROVAS OBTIDAS POR MEIO DE TELEFONE CELULAR APREENDIDO. MENSAGENS
DE WHATSAPP. INEXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. NULIDADE CONSTATADA. PROVAS
INADMISSÍVEIS. DESENTRANHAMENTO DOS AUTOS. WRIT PARCIALMENTE
PREJUDICADO E, NO MAIS, ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO APENAS EM PARTE. (...) 4.
Esta Corte Superior de Justiça considera ilícita o acesso aos dados do celular
e das conversas de whatsapp extraídas do aparelho celular apreendido em
flagrante, quando ausente de ordem judicial para tanto, ao entendimento de que,
no acesso aos dados do aparelho, se tem a devassa de dados particulares, com
violação à intimidade do agente. Precedentes. No caso, a obtenção dos dados
telefônicos do impetrante se deu em violação de normas constitucionais e
legais, a revelar a inadmissibilidade da prova, nos termos do art. 157, caput,
do Código de Processo Penal - CPP, de forma que, devem ser desentranhadas dos
autos, bem como aquelas derivadas, devendo o Magistrado de origem analisar o
nexo de causalidade e eventual existência de fonte independente, nos termos do
art. 157, § 1º, do Código de Processo Penal. 5. Writ prejudicado em parte e, no
mais, ordem concedida, de ofício, em parte, apenas para reconhecer a ilicitude
da colheita de dados dos aparelhos telefônicos (conversas de whatsapp), sem
autorização judicial, devendo mencionadas provas, bem como as derivadas, serem
desentranhadas dos autos, competindo ao Magistrado de origem analisar o nexo de
causalidade e eventual existência de fonte independente, nos termos do art.
157, § 1º, do Código de Processo Penal. (HC 450.617/MG, Rel. Ministro JOEL ILAN
PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 21/02/2019, DJe 06/03/2019).
PENAL E PROCESSUAL PENAL.
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. ACESSO AOS DADOS
ARMAZENADOS EM TELEFONE CELULAR (MENSAGENS DO APLICATIVO WHATSAPP) DURANTE A
PRISÃO EM FLAGRANTE. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. NULIDADE DAS PROVAS.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. LIBERDADE PROVISÓRIA. CONCESSÃO. RECURSO
PROVIDO. I - A jurisprudência deste Tribunal Superior firmou-se no sentido de
ser ilícita a prova oriunda do acesso aos dados armazenados no aparelho
celular, relativos a mensagens de texto, SMS, conversas por meio de aplicativos
(WhatsApp), obtidos diretamente pela polícia no momento da prisão em flagrante,
sem prévia autorização judicial. II - In casu, os policiais civis obtiveram
acesso aos dados (mensagens do aplicativo WhatsApp) armazenados no aparelho
celular do corréu, no momento da prisão em flagrante, sem autorização judicial,
o que torna a prova obtida ilícita, e impõe o seu desentranhamento dos autos,
bem como dos demais elementos probatórios dela diretamente derivados. III - As
instâncias ordinárias fundamentaram a prisão preventiva do recorrente nos
indícios de materialidade e autoria extraídos a partir das conversas
encontradas no referido celular, indevidamente acessadas pelos policiais, prova
evidentemente ilícita, o que impõe a concessão da liberdade provisória. Recurso
ordinário provido para determinar o desentranhamento dos autos das provas
obtidas por meio de acesso indevido aos dados armazenados no aparelho celular,
sem autorização judicial, bem como as delas diretamente derivadas, e para
conceder a liberdade provisória ao recorrente, salvo se por outro motivo
estiver preso, e sem prejuízo da decretação de nova prisão preventiva, desde
que fundamentada em indícios de autoria válidos. (RHC 92.009/RS, Rel. Ministro
FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 10/04/2018, DJe 16/04/2018)
Em outro julgado, o Ministro
Jorge Mussi da 5ª Turma do STJ, comentando a respeito, fez a seguinte abordagem:
“... Não obstante os dados armazenados
em aparelhos eletrônicos, notadamente em telefones celulares, não se encontrem
albergados pela proteção contida no inciso XII do artigo 5º da Lei Maior, não
há dúvidas de que, consoante o disposto no inciso X do mencionado dispositivo
constitucional, dizem respeito à intimidade e à vida privada do indivíduo, não
se admitindo, assim, que sejam acessados ou devassados indiscriminadamente, mas
apenas mediante decisão judicial fundamentada. Doutrina. Jurisprudência” (RHC
100.922/SP, julgado em 11/12/2018, DJe 01/02/2019)
Conforme se vê, aceitando
as “provas” hackeadas os Ministros da Segunda Turma colidem frontalmente com
remansosa jurisprudência da mais alta corte da justiça infraconstitucional do
País. Também colocam por terra dois dos mais sensíveis alicerces dos Direitos e
Garantias Constitucionais deste País, a saber, os incisos XII e LVI, ambos
insculpidos no art. 5º da Constituição Federal.
Não bastasse isso, o
próprio conteúdo das mensagens é colocado em xeque, pois há indícios que parte delas
foram editadas e alteradas para fazer delas extrair contextos diversos dos
originais.
A reboque de tudo,
semeia-se uma forte instabilidade processual no País. O que é hoje poderá já não
mais ser no amanhã, ainda que ancorado em sólidos e prestigiados dispositivos e
entendimentos legais e constitucionais.
Coisas do Brasil. Apenas
isso. Por isso somos o que somos.
Alipio Reis Firmo Filho
Conselheiro Substituto –
TCE/AM e Doutorando em Gestão