quarta-feira, 21 de agosto de 2024

ARTIGO 70/CF: UMA SINGELA, MAS IMPORTANTE RELEITURA NO CONTEXTO DA AVALIAÇÃO DAS CONTAS PÚBLICAS



Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. 

Passados quase 36 anos da Promulgação da atual Carta Magna, parece que ainda não extraímos suficientemente o significado e o alcance do dispositivo em tela. Talvez reescrevendo-o fique mais claro o que quero dizer:

Art. 70. A fiscalização (da gestão) contábil, (da gestão) financeira, (da gestão) orçamentária, (da gestão) operacional e (da gestão) patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. 

Note que a introdução do termo “gestão” tornou mais compreensível a extensão e o significado do dispositivo em causa. O legislador constituinte preferiu não se referir a ele explicitamente. Deixou a cargo do operador do direito e dos destinatários da norma (a saber, o órgão legislativo, os tribunais de contas juntamente com os órgãos de controle interno) essa tarefa.

É que o termo “fiscalização” pressupõe condutas.  Só faz sentido falar em fiscalizar algo se este algo estiver vinculado a alguma conduta ou atitude de uma terceira pessoa. Trata-se aqui de uma modalidade de controle de condutas. Então existem 05 modalidades de gestão: a gestão contábil, a gestão financeira, a gestão orçamentária, a gestão operacional e a gestão patrimonial. Cada modalidade encerra uma natureza de ato. Assim, existem os atos de gestão de natureza contábil, os atos de gestão de natureza financeira, os atos de gestão de natureza orçamentária, os atos de gestão de natureza operacional e os atos de gestão de natureza patrimonial. Por outro lado, cada natureza de ato irá constituir um subconjunto de atos de gestão. Cada subconjunto, por sua vez, abrangerá uma determinada esfera de responsabilização cuja configuração seria a seguinte: 




Ao se debruçar sobre cada esfera, a fiscalização irá poder avaliar se ela se deu de maneira boa (regular), mediana (regular com ressalvas) ou má (irregular). Da conjugação dessas cinco modalidades fiscalizatórias (ou avaliativas) é que se extrairá se as contas anuais serão consideradas, boas, medianas ou ruins. Retomarei essa linha de raciocínio mais tarde. 

Antes, contudo, de darmos continuidade aos nossos comentários, tenho uma importante observação a fazer. É que 12 anos depois da Promulgação da Carga Magna, mais precisamente no ano de 2000, surgiu a sexta modalidade de fiscalização: a fiscalização da gestão fiscal, inaugurada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000). Essa modalidade fiscalizatória difere-se das demais, pois seu conteúdo é genuinamente político e não administrativo. Agregando-a ao quadro anterior, teríamos:

Recorrendo à dicotomia “atos de governo” e “atos de gestão” eu diria que os atos de governo encerram a gestão fiscal, normalmente às voltas com discussões envolvendo temas como dívida pública, equilíbrio entre receitas e despesas primárias, despesas e receitas previdenciárias, carteira da dívida ativa, dentre outros. Todas as demais modalidades fiscalizatórias (contábil, financeira etc) podem ser agrupadas debaixo dos “atos de gestão”, pois sua natureza é puramente administrativa e não política.

No presente artigo me limitarei a analisar tão-somente as modalidades fiscalizatórias referidas no artigo 70.

Mas... o que é gestão? Qual o seu significado?

Gestão é o processo de planejar, organizar, liderar e controlar os recursos de uma organização para alcançar objetivos específicos. A gestão consiste em trabalhar com os recursos disponíveis da forma mais eficiente possível para atingir os objetivos esperados com o mínimo de despesas (https://g4educacao.com)   

Note que a gestão encerra, portanto, quatro tipos básicos de atitudes por parte do gestor: planejar, organizar, liderar e controlar. Todas elas buscam, a um só tempo, alcançar objetivos com o mínimo de despesas ou custos e explorando eficientemente o máximo dos recursos disponíveis. Sim. Este é o significado de gestão.

Dessa forma, a avaliação realizada sobre cada modalidade de gestão (contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial) procurará verificar a presença ou não, parcial ou total de todos aqueles componentes. Se presentes, a avaliação será positiva. Se ausentes, a avaliação apontará falhas podendo reprovar a gestão anual como um todo.   

Tentemos ser mais pragmáticos. Na prática, quais as principais tarefas a cargo de cada gestor dentro de cada esfera de responsabilização? Em outras palavras, que competências os gestores terão de desenvolver no interior das esferas de responsabilização?

A Lei federal n. 10.180/2001 pode nos ajudar nessa tarefa. Ela instituiu quatro importantes sistemas administrativos para o Poder Executivo federal: o sistema de planejamento e orçamento federal, o sistema de administração financeira, o sistema de contabilidade federal e o sistema de controle interno do Executivo federal. Desconsideremos este último, pois não nos interessa nesses nossos comentários.

Na prática, a referida lei impõe competências de natureza orçamentária, financeira e contábil aos gestores que integrarem os respectivos sistemas administrativos. Vejamos mais detalhadamente como tais competências foram delineadas.

 No interior do sistema de planejamento e orçamento (arts. 7º/8º), dentre outras, caberá ao gestor executar ações voltadas: elaborar e supervisionar a execução de planos e programas nacionais e setoriais de desenvolvimento econômico e social;  assegurar que as unidades administrativas responsáveis pela execução dos programas avaliem sua programação; manutenção de sistema de informações relacionados a indicadores econômicos e sociais; e propor medidas que objetivem a consolidação das informações orçamentárias das diversas esferas de governo.

Por sua vez, caberá aos gestores do sistema de administração financeira (art. 12) conduzirem tarefas relacionadas à administração dos haveres mobiliários e financeiros do Tesouro Nacional; a formulação da política de financiamento da despesa pública, administrar as operações de crédito sob a responsabilidade do Tesouro Nacional; e promover o acompanhamento, a sistematização e a padronização da execução da despesa pública.

Por fim, as responsabilidades impostas aos gestores contábeis envolverão os registros contábeis dos orçamentos vigentes, seus créditos adicionais, as receitas prevista e arrecadada, a despesa empenhada, liquidada e paga, a situação patrimonial e suas variações, a renúncia de receitas de órgãos e entidades federais e manter e aprimorar o Plano de Contas Aplicado ao Setor Público e o processo de registro padronizado dos atos e fatos da administração pública, dentre outras ações.

Quanto às ações relacionadas à gestão patrimonial e operacional, elas envolvem, no contexto patrimonial, a aquisição, a guarda, a distribuição, o uso, a conservação e o desfazimento de bens de consumo e permanentes, seu controle patrimonial e físico,  a emissão de termos de responsabilidade por parte dos usuários, a adequação dos bens a padrões patrimoniais etc. Quanto à gestão operacional, ela se debruçará sobre questões relacionadas ao funcionamento do órgão/entidade. Nesse contexto, avaliará a eficácia, a eficiência, a efetividade e a economicidade das competências impostas por leis e regulamentos.

Em síntese, conforme disse anteriormente, a avaliação anual dos órgãos/entidades decorrerá de avaliações parciais conduzidas dentro de cada esfera de responsabilização. Para que uma gestão seja reputada como regular, será preciso que essa condição se faça presente em cada esfera de responsabilização (contábil, financeira, orçamentária, patrimonial, operacional) ou, ao menos, prevaleça majoritariamente. Exemplifiquemos:

Admitamos que as esferas de responsabilização de um determinado gestor tenha sido a seguinte para um ano qualquer:

- Gestão contábil: regular com ressalvas

- Gestão financeira: regular com ressalvas

- Gestão orçamentária: irregular

- Gestão operacional: regular

- Gestão patrimonial: regular com ressalvas

Note-se que a tendência é considerar a avaliação anual desse gestor como “regular com ressalvas”, pois foi a modalidade que mais prevaleceu, considerando todas as suas esferas de responsabilização.  Admitamos, por outro lado, a seguinte situação:

  - Gestão contábil: irregular

- Gestão financeira: regular

- Gestão orçamentária: irregular

- Gestão operacional: regular com ressalvas

- Gestão patrimonial: irregular

Nessa hipótese, a avaliação anual das contas apontaria para a irregularidade, uma vez que foi a modalidade prevalecente, considerando-se as cinco esferas de responsabilização.

Perceba que essa forma de enxergar a gestão pública é mais objetiva e sistematizada, pois resgata todas as principais matizes que circundam o ato de gerir, sem desconsiderar qualquer dos cinco círculos de responsabilização previsto e exigido no corpo do art. 70 da CF.

A própria estrutura dos relatórios de auditoria poderia está dividida de acordo com essa disposição, a saber:



Com efeito, conforme dito anteriormente, a avaliação geral das contas anuais resultaria, diretamente, de suas respectivas avaliações parciais. Assim procedendo, seria possível extrair o máximo de elementos em cada esfera de responsabilização, sempre pautando-se nas exigências/parâmetros impostos pelo conceito de GESTÃO.   

Postos dessa maneira, entendo que, ao mesmo tempo em que estaríamos realizando com mais efetividade o desejo do legislador constituinte de 1988 quanto a uma efetiva, ampla e profunda avaliação das contas públicas; também nos aproximaríamos de uma avaliação anual mais justa, pois cobriríamos os principais quadrantes de atuação dos gestores governamentais. De se ressaltar que à frente de todas as esferas de responsabilização estaria, indubitavelmente, o ordenador de despesas, porém, ladeado por outras autoridades, igualmente responsáveis por “tocar” os negócios públicos em cada natureza de administração considerada (contábil, financeira, orçamentária, operacional, patrimonial). A avaliação seria por faixas de atuação, impedindo que uma faixa “invadisse” o território de outra.  Daí sua importância, objetividade, limites e alcance, uma vez que cada faixa se restringiria à natureza dos atos de gestão contábil, financeiros, orçamentários etc.

 

Prof. Alipio Reis Firmo Filho