Por Alipio Reis Firmo Filho (Artigo publicado na Coluna Gestão no Fato Amazônico)
A corrupção no setor
público é abominável em todas as suas modalidades. Ela é como um potente ácido.
Queima e consome tudo o que vê pela frente, deixando atrás de si um rastro de
destruição. São choros, dores, sofrimentos e desesperos. Um oceano de lágrimas
que jorra de corações oprimidos, costumeiramente esquecidos e abandonados. Não há vida onde ela pisa. Não existe
esperança onde ela toca. Mesmo aqueles que afirmam com ela conviver, mais cedo
ou mais tarde, longe ou perto, acabam recebendo a paga por suas ações. Algumas
vezes, da forma mais inusitada. Muitos nem se dão conta disso.
Assim o é com a obra paga
e não medida, com o produto comprado e não recebido, com o tributo injustamente
dispensado e com a merenda escolar que não visita as creches e escolas. Tudo é
tragado por um imenso redemoinho. Movido apenas pela força da ganância e do
apetite de alguns.
Mas há uma forma de
corrupção que considero a mais letal de todas. Nela, o choro é mais intenso, a
dor é mais profunda, o sofrimento é inigualável e o desespero é infinitamente
maior. Falo da corrupção na saúde. Talvez a forma mais mesquinha, leviana e
infame de desviar dinheiro público.
Enquanto qualquer outra
forma de corrupção subtrai o alimento da mesa da coletividade, a corrupção na
saúde lhe retira o que ela tem de mais precioso: A VIDA. Por isso ela é tão
letal. Por isso ela mata incomparavelmente mais que todas as demais.
Se pudéssemos enxergar –
como num grande telão - o rastro de sangue deixado pela corrupção no sistema
público de saúde, talvez nosso sono nunca mais fosse o mesmo. Uma verdadeira
carnificina. Algo semelhante aos campos de concentração da Alemanha nazista.
Sem exagero algum.
-Quantas
pessoas deixam de fazer suas cirurgias diariamente, o que lhes proporcionaria alívio
na sua dor e no seu sofrimento, simplesmente porque faltam materiais para realiza-las??? Já
pensou nisso?
-Quantos não batem às portas dos postos de
saúde em busca da medicação desejada, que lhes permitiriam dormir melhor, comer
melhor, falar melhor, pensar melhor, andar melhor, enfim, ter um mínimo de
qualidade de vida, e são despedidos de mãos vazias quando lá chegam??? Já
refletiu sobre isso?
- Quantos não deixam de
fazer um exame clínico, capaz de identificar, instantaneamente, um mal,
trata-lo a tempo e evitar seque-las, muitas vezes, irreversíveis??? Alguma vez
você já se fez esse questionamento?
- Quantas crianças não
morrem prematuramente, só pelo fato de as maternidades não disporem de condições,
por falta de dinheiro, de lhes oferecerem um nascimento digno???
- Quantos acometidos por
doenças crônicas (cardíacas, renais, hepáticas, oncológicas) morrem, todos os
dias, em casa ou nos hospitais públicos, por absoluta falta de assistência do dinheiro
público???
Mas, como disse, a
corrupção na saúde pública é mais letal que todas as demais. Ela não mata
apenas o paciente. Atinge, cruelmente, toda a sua família e amigos. O
sofrimento é conjunto. A dor é coletiva. É como uma bomba de neutros. Mata
silenciosamente e sem alarde.
Quantos sequelados não
são produzidos diariamente só pelo fato de as farmácias públicas não disporem
em seus estoques de remédios para o controle da pressão arterial ou dos níveis
de açúcar no sangue?
Vivemos tempos sombrios,
senhores. Na saúde pública, entretanto, as nuvens parecem ser bem mais escuras
que as demais. Há morte por toda a parte e nós sequer nos damos conta disso.
Como se nada tivéssemos a ver com isso.
E quanto àqueles que
produzem esse genocídio? O que fazer deles? Aplicar as mesmas sanções
que são aplicadas para outras situações? Tenho cá minhas dúvidas. Os especialistas na
matéria penal afirmam que deve haver uma proporcionalidade entre o ilícito
cometido e a sanção correspondente. Isso funciona direitinho na teoria, mas na
prática...
As coisas são bem
diferentes.
Há muito defendo que
nossa Constituição “cidadã” já não é mais tão cidadã que outrora. Muitos
dispositivos já foram revogados pela tábua de valores da sociedade brasileira.
É grande a indignação coletiva. É imensa a sede por justiça. Muitos de seus
dispositivos já não mais respondem aos anseios por justiça. Nesse ponto, estou
com Maria Helena Diniz, ao admitir a existência das lacunas ontológicas e
axiológicas, ambas refletindo o descompasso entre a (velha) norma jurídica e os
valores sociais contemporâneos.
O atual texto
constitucional, p. exemplo, impede a aplicação da pena perpétua no País.
Trata-se de uma cláusula pétrea que é imune às mutações constitucionais via
emendas. Na minha singela opinião, tal disposição já deveria ter sido objeto de
reflexão, a fim de avaliar até que ponto o comando constitucional satisfaz os
valores sociais mais sensíveis. A vida, certamente, está entre eles que, aliás,
os encabeça.
Como tratar igualmente os
(tipos) desiguais, desconsiderando-se a exata medida de suas desigualdades?
Como ignorar os danos (imensos) gerados pela corrupção na área da saúde cujas
consequências não se limitam a meras infrações de procedimentos ou
locupletamento de recursos públicas, indo além, ceifando vidas e semeando dor e
sofrimento à família e aos amigos do paciente? Nunca devemos nos esquecer: os
efeitos da corrupção na saúde pública funcionam como EXTERNALIDADES. Suas
consequências nocivas atravessam a órbita do seu destinatário (paciente, doente)
e alcançam muitas outras pessoas que não participaram diretamente da relação
poder público/paciente.
Para a reflexão de todos
nós.