As auditorias governamentais no Brasil, sobretudo aquelas
realizadas pelos tribunais de contas, sempre acontecem, em regra, após o
encerramento do ano. Conquanto a prática seja legítima, não há como deixar de
reconhecer que ela precisa ser repensada. Não faltam argumentos nesse sentido.
Vejamos apenas alguns.
Há quem diga que fiscalizar um órgão governamental após tudo
já ter acontecido equivale a desenterrar defunto. De fato. O dito popular “é
melhor prevenir que remediar” vale também para as auditorias governamentais. Assim
como dá mais trabalho recuperar um doente, não é tarefa fácil trazer de volta o
que fora aplicado irregularmente. Há pesquisas demonstrando que apenas 5% do que
é malversado no serviço público retorna aos cofres governamentais. É uma
estatística chocante. Se o quadro é
esse, então é preciso que procuremos fazer com que o paciente não adoeça. Nas
auditorias governamentais isso equivale a dizer que precisamos que a
fiscalização seja realizada no momento em que as coisas estejam acontecendo, ou
seja, durante o ano e não (somente) depois que ele é encerrado. Alguém poderia
se questionar: como fazer isso? Simples: façamos duas auditorias no ano, uma ao
final do primeiro semestre e outra ao término do segundo. A segundo visita
seria para avaliar se as correções propostas na primeira foram implementadas
além, é claro, de avaliar a gestão governamental ocorrida na segunda metade do
ano. Poderíamos pensar em auditorias seletivas, isto é, auditorias que focariam
seus trabalhos nas áreas mais críticas das unidades governamentais, isto é, aquelas
que reclamassem maiores cuidados. Desta
feita, os acompanhamentos concomitantes assim realizados não se prestariam a
avaliar todos os setores de um órgão público (licitação, convênios, recursos
humanos, patrimônio, etc.), como ocorrem atualmente, mas tão-somente parte
deles (ou mesmo em um setor apenas).
Grande parte dos tribunais de contas no Brasil estão
utilizando o Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) como meio de tornar sua
atuação mais eficaz. Eu mesmo, como Relator, já lavrei alguns. E olha:
funciona. Às vezes, um bom diálogo resolve milhões de problemas. O Termo
equivale a um acordo de cavalheiros. As partes se convencionam tentando chegar
a um mesmo fim. Precisamos recorrer mais a eles.
Outra crítica costumeiramente levantada contra as auditorias
subsequentes afirma que não dá pra fazer
um levantamento profundo nas contas públicas, pois o tempo é demasiado curto. Os
que defendem esse ponto de vista também estão com a razão.
Por menor que seja o orçamento de um órgão governamental,
fiscalizar uma gestão é sempre uma tarefa complexa. Já ouvi alguns dizendo que
um orçamento de 10 milhões de reais dá pra avaliar em uma semana. Tenho lá
minhas dúvidas.
Costumo dizer - por experiência própria - que a complexidade
de uma auditoria governamental não decorre, diretamente, do valor que é
auditado, mas de seus desdobramentos.
Um orçamento comporta diversas naturezas de gastos: há gastos
com o pagamento de pessoal, outros que são aplicados na compra de materiais,
equipamentos e serviços, há recursos destinados a áreas específicas relevantes
como a educação e a saúde e por aí vai. Cada uma dessas modalidades de gastos,
por sua vez, exige ações específicas, tais como, procedimentos licitatórios,
dispensas ou inexigibilidades; lavratura de contratos; verificação se o que foi
entregue pelo fornecedor está correto em quantidade e qualidade; observação dos
requisitos para a contratação de pessoal, etc. Tudo isso tem que ser verificado
nas auditorias governamentais. O problema é que o tempo destinado para todas
essas avaliações não passa de uma ou duas semanas. Questiona-se: será que em
uma semana tenho condições de avaliar tudo isso? Certamente que não. Esta é uma
das razões por que a maioria das auditorias governamentais não geram os
resultados esperados. Ou seja, tenta-se fiscalizar tudo sem que sejam
fiscalizados quase nada. As auditorias assim conduzidas são boas apenas para as
estatísticas dos órgãos fiscalizadores: “fiscalizamos 100% de nossos
jurisdicionados!!”, é o que costumam proclamar. O problema é: qual a qualidade
dessas auditorias? Elas viram, efetivamente, o que tinham de ver? A amostra
fiscalizada representa, de fato, a população, com todas as suas características
essenciais? Podem servir como balizadores para a avaliação da gestão? São
sólidas o suficiente para resistirem ao mais exigente questionamento? Também aqui tenho lá minhas dúvidas.
Não dá pra fiscalizar tudo em uma ou duas semanas. Ainda que
se dedicasse um mês para a realização dos trabalhos, dependendo da complexidade
do que se desejasse levantar, poderia, ainda assim, ser pouco.
As visitas “in loco” têm de trazer tudo “mastigadinho”. A
análise de papéis e documentos no órgão auditado deve servir para referendar
(ou não) as pesquisas já realizadas. Elas são, portanto, complementares. Não
iniciam o processo investigativo. São responsáveis por finalizá-lo.
Há, ainda, os que afirmam que as auditorias realizadas no modo tradicional analisam apenas papéis antigos e empoeirados. Sua atuação é, portanto, limitadíssima. Não exploram, como deveriam explorar, as modernas técnicas de investigação que envolvem, muitas vezes, o cruzamento de informações, o exame acurado dos bancos eletrônicos de dados governamentais, o concurso de informações provenientes de órgãos situados fora da esfera governamental auditada (órgãos trabalhistas, previdenciários, etc.), a pesquisa diligente de dados muito antes que sejam iniciados os trabalhos de campo, dentre outras ferramentas.
Tais grupos criticam a
maneira como as auditorias governamentais são atualmente conduzidas pelo
simples fato de elas concentrarem todos os seus esforços durante os trabalhos
de campo. Praticamente, não fazem nada antes dele. Literalmente, deixam o
paciente adoecer para depois tratá-lo.
Também concordo com esse ponto de vista.
Devemos encarar os levantamentos dos dados públicos como se
fossem verdadeiras pesquisas. Os dados têm de ser coletados, tratados e depois
analisados para que sejam extraídas conclusões abalizadas. E isso exige tempo,
muito tempo em algumas situações.
Urge, portanto, que invertamos os polos: concentremos nossas
auditorias governamentais no acompanhamento do ciclo da gestão e não (somente)
após seu término. Priorizemos os levantamentos prévios em detrimento dos
subsequentes. Do contrário, continuaremos a ser taxados como órgãos inoperantes
e que representam apenas um peso para a sociedade.
ALIPIO REIS FIRMO FILHO
Conselheiro
Substituto/TCE-AM