O art.
70 da Constituição da República é quem
regula o controle das contas públicas no Brasil. Segundo esse dispositivo:
Art. 70. A fiscalização contábil,
financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da
administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade,
economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida
pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle
interno de cada Poder.
Parágrafo
único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores
públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma
obrigações de natureza pecuniária.
O alcance e a profundidade do dispositivo
ficariam melhor compreendidos se lhe fosse acrescentada uma “palavrinha mágica”:
gestão. Ficaria assim: “A
fiscalização da gestão contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da
União (...)”. O acréscimo do termo à disposição constitucional não lhe imprimiria
propriamente um novo significado. Serviria para lhe explicitar seu real sentido.
Gerir significa orientar pessoas debaixo
de uma cultura organizacional. Cada entidade tem sua própria cultura
organizacional. A cultura de uma organização é sua identidade. O fator que a
diferencia de todas as demais. Grosso modo, a personalidade de um indivíduo
está para ele assim como a cultura está para a organização que a cultiva.
A missão de uma entidade, seus valores e
seus objetivos expressam, de uma maneira geral, sua cultura. Com efeito, todas
as decisões por ela tomadas, assim como as motivações, avaliações e
reavaliações de seu capital intelectual têm
por fim, única e exclusivamente, orienta-lo no sentido de realizar sua cultura
da organização.
A gestão tem por foco as pessoas, mas se preocupa
também com a sinergia entre elas e os demais recursos postos à disposição do
gestor (materiais, financeiros, tecnológicos).
Pois bem. Trata-se da configuração pretendida
pelo legislador constituinte originário. A busca pela eficiência na gestão está
nele representada. Do contrário, não faria sentido algum avaliar as condutas
dos administradores públicos como regular, regular com ressalvas ou irregular
pelos tribunais de contas.
Dentro desse contexto, a primeira conduta
a ser avaliada refere-se à gestão
contábil.
É comum ouvir de muitos contadores
públicos, assim como muitos escritórios contábeis que prestam serviços para o
setor público - prefeituras e câmaras de pequenos municípios, principalmente – quando
questionados sobre a prática de determinadas irregularidades envolvendo
balanços e rubricas contábeis, o seguinte jargão: “eu não posso ser
responsabilizado. Não sou gestor. Não administrei dinheiro ou manipulei bens
públicos. Quem tem que responder por isso é o ordenador de despesas”.
Esse tipo de argumento não tem fundamento,
ante às disposições do art.70 do Texto Constitucional.
Nele, há três naturezas de elementos
geridos: dinheiros, bens e valores
públicos. A responsabilidade do
contador público (ou daqueles que prestam serviços de contabilidade para os
organismos públicos) funda-se no último desses elementos, qual seja, os valores
públicos.
Numa acepção bem ampla, os valores
públicos compreendem qualquer elemento de gestão não representados propriamente
por dinheiros ou bens. Nessa categoria estão, p. exemplo, os títulos públicos,
emitidos para captar recursos no mercado privado e/ou servir de instrumento de
política monetária, a fim de debelar surtos inflacionários. Contam-se, ainda,
qualquer papel ou nota que incorporam e representam valores públicos, como contratos e documentos comerciais. Também
podem ser representados pelas cédulas e moedas estrangeiras tutelados pelos organismos
públicos que, muito embora não possam servir de moeda nas transações comerciais
dentro do Território Nacional – uma vez que não possuem valor comercial segundo
norma do Banco Central – incorporam, na sua essência, o conceito de valores
públicos. Pensemos também nos metais preciosos como o ouro e equivalentes que
igualmente se enquadram nessa modalidade de objetos geridos.
Pois bem. Conforme visto, há uma infinidade
de elementos geridos que podem ser classificados como valores públicos e que,
por extensão, estão sujeitos à fiscalização dos tribunais de contas.
A
responsabilidade na gestão contábil nasce precisamente do dever de os serviços
de contabilidade representarem, FIELMENTE, o patrimônio governamental, em qualidade
e em quantidade. Nesse sentido, a representação contábil do patrimônio público
deve ser um espelho do conteúdo real (dinheiros + bens).
Qualquer
discordância entre eles conduzirá, fatalmente, à leitura errônea do conteúdo
governamental pela sociedade (cidadãos e instituições) e, consequentemente, à
responsabilização cível e penal do profissional que lhe deu causa, inclusive,
com a comunicação ao seu Conselho Regional para a tomada de providências no
âmbito disciplinar. Essa providência, contudo, não exime a responsabilidade
perante os tribunais de contas, com todas as consequências decorrentes de sua
conduta faltosa (aplicação de multas, condenação solidária pela devolução de
recursos, inabilitação para participar de licitações, impedimento para assumir
cargos de comissão no setor público). Nessa linha de entendimento, o Tribunal de Contas do Estado do Amazonas,
por meio da Resolução/TCE nº 15/2013, equiparou aos funcionários públicos os
contabilistas e as organizações contábeis que prestam serviços para os
municípios amazonenses, nos seguintes termos:
Art. 19. Os contabilistas
ou organizações contábeis que prestem serviço ou assessoria contábil aos entes
públicos municipais serão equiparados a funcionários públicos, conforme § 1o do art. 327 do Código
Penal e responsabilizados administrativa, civil e penalmente nos termos das
legislações específicas e outras especiais, respeitadas as jurisdições
inerentes a cada caso, pelos atos que tenham, de alguma forma, influenciado ou sido
determinante para transgressão da lei ou para a concretização do dano ou
prejuízo ao erário.
Parágrafo
único. Além das providências administrativas adotadas pelo TCE e CRC, não
exclui a representação ao MPE, a fim de que se proceda ao ajuizamento da ação
penal cabível, quando da prática de ato configurador de ilícito penal.
A
reprimenda é bastante oportuna. Principalmente agora quando os ventos da
transparência pública sopraram forte sobre o setor público nacional
(Lei n. 12.527/2011 e Lei Complementar n. 131/2009). Com efeito, os signos
contábeis devem estar perfeitamente sintonizados com os signos patrimoniais. Os
primeiros têm que expressar, rigorosamente, o conteúdo dos últimos, sob pena de
responsabilização de quem lhe deu causa, a saber, primeiramente, os
responsáveis pela escrituração contábil e também os ordenadores de despesa. Mas
a cadeia de responsabilidade pode ser ainda maior, vindo a alcançar todos
aqueles que, direta ou indiretamente, concorreram para a má gestão dos valores
públicos, representados aqui pelas rubricas e balanços governamentais.
Nesse sentido, é
importante fazer remissão à Norma Brasileira de Contabilidade, NBC TSP Estrutura
Conceitual, de 23 de setembro de 2016, do Conselho Federal de Contabilidade que,
em seu Capítulo 3, pontua, exaustivamente, as características qualitativas que a
informação contábil deve reunir. São elas: a relevância, a representação
fidedigna, a compreensibilidade, a tempestividade, a comparabilidade e a
verificabilidade. Vejamos, em linhas gerais, quais as características de cada
uma delas.
Relevância:
é relevante a informação quando ela puder confirmar
ou predizer algo. Se reunir qualquer uma dessas características ou as duas
concomitantemente, deverá ser objeto de registro contábil.
Representação
fidedigna: é
uma das qualidades mais importantes da informação contábil. Segundo ela, os
registros têm que corresponder exatamente aos contornos do fenômeno econômico
ou qualquer outro fato digno de ser representado pela Contabilidade. Para
tanto, segundo a mesma norma, a informação deve estar completa, neutra e
livre de erro material tanto quanto possível.
Compreensibilidade:
a informação deve ser facilmente assimilada
pelos usuários.
Tempestividade:
essa qualidade é particularmente invocada e
reforçada pela Lei da Transparência (Lei Complementar n. 131/2009), que exige a
informação EM TEMPO REAL no setor público. Não serve a informação contábil que
demora a ser produzida, pois desgarra-se, no tempo, dos fenômenos que motivam
seu registro. Tornam-se informações obsoletas carecendo de utilidade. Não
servem para a tomada de decisão ou qualquer outra forma de uso que os usuários
possam dela extrair.
Comparabilidade:
a informação contábil deve ser produzida de
tal forma que possa ser comparada com outras. Para tanto, é primordial a adoção
de padrões que possam acomodar realidades distintas.
Verificabilidade:
os registros contábeis não devem ser um fim em
si mesmos. Eles devem estar suportados por evidências. São as evidências que
conferem à informação contábil essa qualidade.
Se a informação contábil
incorporar todos esses elementos, a conduta do gestor contábil estará muito
próxima do esperado. Todavia, faltando-se um, alguns ou todos os elementos
apontados, não haverá outra saída senão responsabilizá-lo, como, aliás, são
responsabilizados todos os demais gestores (gestores orçamentários, financeiros,
patrimoniais e operacionais). Nem mais,
nem menos.
Com efeito, o registro contábil
do valor de dinheiros e bens públicos acima ou abaixo de seu verdadeiro valor
atrai a responsabilização do gestor contábil. Não somente dele, mas de todos quanto com ele,
direta ou indiretamente, concorreram para a irregularidade na gestão.
Não bastasse isso, também a Lei n. 4.320/64 já impunha deveres aos serviços de contabilidade na gestão dos valores públicos.
O art. 87 já determinara ao contador que mantivesse o controle contábil dos direitos e obrigações oriundos de ajustes ou contratos em que a administração pública fosse parte. Por sua vez, o art. 88 impõe o dever de os débitos e créditos serem escriturados com individualização do devedor ou do credor e especificação da natureza, importância e data do vencimento, quando fixada. Também o art. 89 determina que a contabilidade evidencie os fatos ligados à administração orçamentária, financeira patrimonial e industrial. Por último, o artigo 85 observa que os serviços de contabilidade deverão ser organizados de forma a permitirem o acompanhamento da execução orçamentária, o conhecimento da composição patrimonial, a determinação dos custos dos serviços industriais, o levantamento dos balanços gerais, a análise e a interpretação dos resultados econômicos e financeiros.
Sobre este último mandamento, entendo que o imperativo legal é dirigido tanto aos profissionais à frente da gestão contábil quanto aos próprios ordenadores de despesas. Quanto a estes últimos, são eles que, originariamente, são os responsáveis por dotarem tais serviços das condições necessárias para bem servir aos propósitos públicos. Omissões nessa conduta ou atitudes negligentes ensejam, portanto, sua responsabilização.
Além dos referidos dispositivos, todos os demais (arts.90/106) devem igualmente ser considerados quando da avaliação da gestão contábil pelos tribunais de contas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário