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domingo, 7 de abril de 2019

A CASA DA MÃE JOANA


(*) Artigo publicado na minha coluna Gestão no Fato Amazônico (www.fatoamazonico.com)

Imagine uma família que por longos anos – pensemos algo em torno de 10, 15 ou 20 anos – conviveu com a falta de regras básicas de convivência em grupo. Nessa família, durante esses anos, não houve respeito, disciplina ou moralidade. Não houve regras ou limites para qualquer coisa. Todos podiam fazer tudo, sem barreiras. Predominava  a vontade pessoal. Ela era intocável. Inatingível. Interferência alheia? Nem pensar!!  Durante aqueles anos, nunca se falou em abusos ou excessos, uma vez que tudo era permitido.   

Os filhos chegavam e saiam de casa a hora que quisessem, inclusive os menores de idade. Não precisavam dar nenhuma satisfação aos pais. Dada a liberdade que gozavam,  também frequentavam a escola quando bem entendessem. Tinham o privilégio de escolher o dia para estudar. Se tivessem vontade de faltar às aulas, problema algum haveria. Nessas condições, as notas nos exames pouco importavam.   Não havia cobrança de bons desempenhos, de bom comportamento. Disciplina e respeito para com os professores e colegas de escola, ficavam para o segundo plano.  Eles sempre tinham o aval dos pais. “Sempre respeitamos o direito de livre arbitramento deles”, diziam os pais, com certo orgulho até.

O lazer também seguia a mesma linha. Podiam frequentar qualquer lugar, sem peias ou regulamentos; acompanhar-se de qualquer pessoa e tomar qualquer bebida. Fumar ou não fumar dependia apenas de uma decisão pessoal. Isso incluía drogas não lícitas. Não importava o que os pais pensassem ou deixassem de pensar. Eles, aliás, referendavam tudo o que os filhos faziam.  Sempre pautando-se pela plena liberdade de consciência, pela livre conduta e pela livre expressão do pensamento. Algo parecido com a tal Casa da Mãe Joana. Segundo a Wilkipédia, a expressão refere-se a lugar ou situação onde vale tudo, sem ordem, onde predomina a confusão, a balburdia e a desorganização.  

Eu poderia prosseguir no detalhamento do lifestyle dessa família, mas acredito que não  será preciso. As matizes aqui postas já nos dão uma ideia de como os integrantes dessa família fictícia se relacionavam entre si e com o mundo exterior. Evidentemente que aqui e ali houve uma certa dose de exagero na narrativa. Mas nada que comprometa o cenário que desejei retratar.  

Mudemos agora de trajetória.

Admitamos que os pais decidissem colocar regras nessa família. Não deixar as coisas tão soltas. Chegaram à conclusão que o melhor dos mundos não é todo mundo fazer o que deseja. Respeito e civilidade são importantes para a boa convivência. Funcionam como fertilizantes. Decerto que a tarefa não será das mais fáceis. É como domar um cavalo selvagem ou por o pé no freio de um veículo desgovernado. Haverá resistências. Muitas resistências. Recorrendo à gíria popular, se não houver pulso, estará fadada ao insucesso.

O maior problema será definir fronteiras. Fixar linhas divisórias onde elas nunca existiram. Estabelecer padrões de conduta outrora inimagináveis. Certamente que mudanças dessa envergadura promoverão choques violentos. Afinal, são condutas que perduram por anos a fio. Já estão enraizadas no seio familiar. Fazem parte da rotina. É lei entre as partes.

É mais ou menos essa a fase que estamos atravessando no Brasil. Por anos a fio, acostumamo-nos ao que era bom. Ou melhor, àquilo que julgávamos bom. Durante esse período, práticas foram consolidadas em nossa rotina como se dela fizessem parte. Isso ocorreu em vários redutos.

É fato: o Estado brasileiro é caro e pouco eficiente (para usar um eufemismo). Essa questão começou a chamar a atenção dos súditos, isto é, daqueles que carregam o peso desse Titã. Gasta-se muito, mas, principalmente, gastamos muito mal. Não temos a cultura do cuidado, do zelo, do balanceamento entre o custo e o benefício. É muito rarefeito no setor governamental o empreendedorismo. Planejamentos estratégicos ficam na gaveta ou são confeccionados apenas para satisfazer a uma exigência legal. Isso acontece também com muitos outros documentos públicos, como planos, programas e políticas públicas. O depoimento estarrecedor de Sérgio Cabral é uma prova cabal disso. Admitiu, sem meias palavras, que se elegeu unicamente para assaltar os cofres públicos. Como ele, tantos outros. Temos que banir essa corja de bandidos de nosso meio. Fazer uma limpeza. São lobos em pele de cordeiro que nada fazem e nunca fizeram pelo País.

Quer outro exemplo? Passemos em revista a realização da Copa do Mundo de 2014. Lá colheremos outros preciosos ensinamentos. Até hoje (e por muitos bons anos ainda) contabilizaremos os prejuízos. Obras faraônicas. Caras. Sem quase nenhuma utilidade. A Arena da Amazônia, por exemplo, consome mensalmente em torno de R$ 600 a R$ 700 mil reais de nosso precioso e mingado dinheiro para mantê-la. O custo-benefício? Não preciso comentar. Todos nós já sabemos.  E como ela, tantas outras espalhadas por esse País continental. Já pararam para pensar quanto desperdiçamos em obras inacabadas? Dinheiro que foi para o ralo, a serviço de uns poucos; guardado, muito bem guardado em malas cheinhas de dinheiro.   

Mas ao contrário do que pensamos o problema do setor público brasileiro não é exatamente o fato de ser caro. O problema é outro. Os serviços públicos prestados no Brasil são, com raríssimas exceções, de baixíssima qualidade (para usar um eufemismo). Saúde, educação e segurança pública são os mais criticados. Alemanha e Canadá também dão boas mordidas na renda de seus súditos. Possuem, como nós, altas cargas tributárias. A diferença é que lá o peso da carga é mais do que compensado pela qualidade dos serviços prestados. Lá há compromisso com o cidadão.

Sou servidor público, ingressei por concurso público em todos os cargos por onde passei, assim como no que estou atualmente. Diariamente, testemunho o dinheiro público sendo jogado fora, privilegiando alguns em detrimento de outros. E não é somente o alto escalão que adota essa prática. Isso acontece em todos os escalões governamentais. Consulte-se, por exemplo, o teor da Emenda Constitucional nº 47/2005, responsável por incluir o § 12 no art. 37 da Constituição Federal, e tirem suas próprias conclusões. Veja o antes e o depois dessa Emenda constitucional. O impacto nos gastos de pessoal no setor público, mormente nos estados que a adotaram. No ano passado foram pelo menos sete unidades federativas estaduais a decretarem estado de  calamidade financeira? Coincidência?

São privilégios que nos acostumamos a conviver. Privilégios transvestidos de “direito adquirido”, muitos, aliás, ainda sem preencherem os requisitos legais. Vejam só. Lutamos por algo que ainda nem faz parte de nosso patrimônio jurídico. Como se já fizesse. Não queremos que ninguém mude o curso da trajetória, pois o limite da linha de chegada já fora pintada por nós mesmos, muito antes de nós a alcançarmos. Se alguém afastar um pouco mais a linha de chegada, obrigando-nos a correr um pouco mais, é um Deus nos acuda!! Xingam, gritam, deturpam!! Como disse uma amiga minha: “no Brasil, somos individualistas. Ninguém tem espírito do coletivo. Se eu quero que algo melhore é para atender à minha casta e ponto final”. O Brasil carece de gente comprometida com o público, com a coisa pública.  

É também como eu disse certa vez numa rede social: nós, cidadãos brasileiros, queremos ter o que os países de primeiro mundo entregam a seus cidadãos, mas não estamos dispostos a pagar o preço. Tudo pode mudar, mas deixa meu pedaço comigo. Eis o retrato do Brasil na atualidade. Vejam o que está acontecendo quando alguém ousa falar em Reforma da Previdência no Brasil. São imediatamente devorados.  Para o exercício de 2019 o déficit previdenciário federal será de 303 bilhões de reais. Esse buraco será fechado com recursos do orçamento fiscal. São 303 bilhões que poderiam ter outro destino, como a construção de rodovias no País, fomentando a criação e a circulação de riqueza.

Há debates acirrados que colocam em dúvida esse déficit. Inclusive, há Relatório de Comissão no Congresso Nacional que afirma não existir déficit algum. Que um dos vilões do atual déficit previdenciário se chama Desvinculações da Receita da União, responsável por desvincular 500 bilhões de reais da Previdência Social, no período de 2005 e 2014. De fato,  a prevalecer esses números, desaparece o déficit. Entretanto, para além do déficit (ou não déficit) previdenciário, há outras questões importantes que precisamos enfrentar. Existem distorções gravíssimas na própria legislação previdenciária que precisam ser revistas e que, direta ou indiretamente, oneram os cofres públicos previdenciários. Quer um exemplo? O abono previdenciário. Sou servidor público e sou contra esse instituto. É uma fonte a menos que a previdência do setor público deixará de contabilizar. Agora imagine quantos servidores públicos pelo Brasil afora adquirem o direito à aposentadoria, mas optam por ficar no serviço público estimulados, talvez, na maior parte das vezes, pelo tal do abono de permanência. Para quem não sabe a coisa funciona mais ou menos assim: quem reuni condições de se aposentar e prefere continuar trabalhando, deixa de contribuir para a previdência do setor público. Outra forma de abonar é compensando o valor descontado mediante um crédito no mesmo valor. Não estou aqui fazendo coro contra os servidores públicos. Muito pelo contrário. Eu também sou servidor público. O que ressalto é uma grande distorção nas contas públicas que, a meu sentir, precisa ser revisto. Acontece que não queremos revê-lo, pois isso mexe com o meu pedaço. É o tal do espírito de individualidade que vigora neste País.  Portanto, o problema não se resume ao déficit previdenciário. Como disse anteriormente, o setor público brasileiro gasta muito e também gasta muito mal. Se pretendemos mudar nossa trajetória é preciso revermos o quadro que temos hoje. E aqui há várias frentes para serem abertas. Do contrário, não iremos a lugar algum. Nem Bolsonaro, nem Haddad, nem qualquer um que assuma o comando deste País vai mudar qualquer coisa. Por um simples motivo: nós não queremos mudar. O pior cego é aquele que não quer enxergar.     

Acostumo-nos com um Estado paternalista, que atende a todos os nossos desejos, sem limites, sem peias ou regulamentos. Uma casa da mãe Joana.

Que Deus tenha misericórdia de todos nós.

Alipio Reis Firmo Filho

Conselheiro Substituto – TCE/AM    



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