Dois temas dividiram a pauta
da imprensa nacional na última semana. De um lado, a elevação do subsídio
dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; de outro, o fim do Programa
Mais Médicos, mantido com Cuba.
A queixa geral em relação
à elevação dos subsídios é que ela produzirá um efeito cascata, justamente num
momento delicado da economia brasileira. O País precisa calibrar suas finanças
já que nos últimos anos o orçamento federal tem fechado com sucessivos déficits
primários. Em 2016 ele bateu 30,5 bilhões de reais. Em 2017 saltou para 124
bilhões e para 2018 há uma projeção de 148,1 bilhões. Para 2019 as expectativas
não são muito animadoras. Aguarda-se um déficit de 139 bilhões. Especialistas
dizem que o impacto do aumento sobre as contas públicas ficará entre 4 e 6
bilhões por ano, graças ao efeito cascata. Ou seja, tomando por referência o
contexto econômico brasileiro não haveria muito espaço para a adoção da medida. É importante destacar, todavia, que a última
movimentação do teto ocorreu em 2014, isto é, há quatro anos atrás quando o
subsídio dos Ministros da Suprema Corte passou a ser de 33,7 mil reais.
Não devemos nos esquecer
ainda que no final do mês de agosto do corrente ano o presidente Michel Temer
decidiu manter a previsão de aumento para os servidores públicos civis da União
para 2019. A medida adicionou um gasto da ordem de 6,9 bilhões de reais ao
orçamento federal para aquele exercício (e para os anos subsequentes). Isto é, nada obstante a crise atravessada pelo País o
Chefe do Executivo federal preferiu fechar os olhos e autorizar o gasto.
No tocante à elevação dos subsídios algumas
considerações de natureza jurídica merecem reflexão.
Em primeiro lugar, é
importante destacar que a elevação do gasto não se trata de reajuste
remuneratório, mas de reposição do poder aquisitivo da moeda. É que desde a
Emenda Constitucional nº 19/1998, a Constituição Federal assegura a “revisão geral anual” a todos os
agentes públicos, magistrados ou não (inciso X, art. 37). Até a Emenda, a
revisão alcançava apenas os servidores civis e militares da União.
Outro ponto que merece
ser considerado é quanto ao efeito cascata amplamente criticado pelo grande
público, especialistas e a imprensa em geral.
A EC nº 19/1998 fixou o
subsídio dos Ministros da Suprema Corte como o teto máximo remuneratório para a
Administração Pública brasileira. Na prática, isso significa que nenhum agente
público no País, magistrado ou não, poderia receber remuneração superior ao
percebido pelos membros do STF. Cinco anos depois veio a EC nº 41/2003 fixando
subtetos. A regra do teto máximo continuou. Todavia, cada nível de governo
teria um subteto próprio. Nos municípios o subsídio do Prefeito passou a ser o
limite. Nos estados e DF foram fixados três subtetos: o subsídio do Governador
para o Poder Executivo, o subsídio dos Deputados estaduais e distritais para o
Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores para o Poder Judiciário.
Cada Subteto corresponderia a 90,25% do subsídio dos Ministros do STF.
Portanto, a Emenda respeitava a autoridade máxima de cada Poder como referência
para as remunerações percebidas pelos seus respectivos agentes públicos,
servidores civis, militares e magistrados. Nada mais lógico. A Emenda
respeitava a pirâmide remuneratória de cada Poder tomando por parâmetro os
ocupantes do primeiro escalão.
Nessa estrutura
remuneratória, os agentes públicos dos escalões inferiores só indiretamente
estariam vinculados ao subsídio dos Ministros da Suprema Corte. Havendo
elevação dos subsídios desses, cada chefe de Poder poderia também elevar sua própria
remuneração, desde que respeitasse o percentual máximo (90,25%). Só então o
novo teto remuneratório atingiria os demais agentes públicos (servidores civis
e militares). Entretanto, muitos governadores e prefeitos preferiram não elevar
seus subsídios, ou seja, muito embora o novo subsídio dos Ministros fosse
fixado, eles não elevavam seus próprios subsídios o que “segurava” o efeito
cascata nos gastos com o funcionalismo público. Manaus é um exemplo disso em
que o prefeito preferiu não elevar seus próprios subsídios nos últimos anos.
Em 2005 veio a Emenda
Constitucional nº 47, que incluiu o parágrafo 12 no art. 37 da CF/88 com a
seguinte redação:
Para os fins do disposto no inciso XI do caput
deste artigo, fica facultado aos Estados e ao Distrito Federal fixar, em seu
âmbito, mediante emenda às respectivas Constituições e Lei Orgânica, como
limite único, o subsídio mensal dos Desembargadores do respectivo Tribunal de
Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do
subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, não se aplicando o
disposto neste parágrafo aos subsídios dos Deputados Estaduais e Distritais e dos
Vereadores.
Aqui reside a verdadeira
gênese do efeito cascata. A partir dessa disposição, os Estados e DF poderiam substituir
os subtetos dos poderes Executivo e Legislativo pelo do Poder Judiciário. Ou
seja, os entes federativos que adotassem essa alteração trocariam os subtetos
daqueles dois poderes (Governadores e Parlamentares estaduais e distritais)
pelo subteto do Judiciário. Os subsídios dos Governadores e Parlamentares
estaduais e distritais deixariam de servir de limite para os demais agentes
públicos dessas unidades federativas. Falou mais alto o “jeitinho brasileiro”
de solucionar problemas. Na prática, todas as vezes que fossem elevados os subsídios
dos Ministros do STF não mais seria preciso aguardar que Governadores e Parlamentares
estaduais e distritais reajustassem seus próprios subsídios. O aumento seria instantâneo,
pois balizar-se-ia pelos subsídios dos Desembargadores que, por sua vez,
representavam 90,25% dos subsídios da Corte Suprema. Pelo que tenho notícia 13
(treze) estados da federação emendaram suas Constituições e adotaram a solução
cristalizada pelo § 12 do art. 37. O Estado do Amazonas foi um deles.
Mas os problemas não
param por aí. Muitos municípios brasileiros enveredaram pelo mesmo caminho.
Tomando por referência o mesmo dispositivo, interpretaram-no literalmente. Para
eles a referência aos “Estados” abrangeria seus municípios o que,
implicitamente, também autorizaria a mesma prática no âmbito municipal, qual
seja, não mais o subsídio do prefeito balizaria os gastos com pessoal, mas o
subsídio dos Desembargadores. Essa interpretação, a meu ver, quebra o pacto federativo
uma vez que não mais a comuna poderia impor limites às suas próprias despesas
com pessoal já que o legislativo estadual já o teria feito quando optou por adotar
a solução preconizada no § 12 do art. 37 da Carta Magna.
Nunca é demais destacar
que uma das finalidades dos subtetos era justamente garantir a autonomia e a
competência dos poderes para fixar seus limites remuneratórios ante à sua
capacidade de pagamento. A EC nº 47/2005
fulminou essa regra abrindo caminho para sucessivos e constantes desequilíbrios
fiscais nos entes subnacionais. O efeito cascata produzido pela revisão anual
dos Ministros do STF foi potencializado pela Emenda nº 47/2005. Disso não há
duvida.
O curioso é que o alvo
das críticas – a magistratura – foi a única categoria de agentes públicos que
continua como estava no passado: seguindo o teto dos Ministros do STF. Nada
mais lógico. Na verdade, foram os agentes públicos dos dois outros Poderes –
Executivo e Legislativo – que, estimulados pela EC nº 47/2005, deixaram de balizar
seus rendimentos pelo Chefe do respectivo Poder, rompendo com a estrutura
remuneratória então vigente e vinculando-se, indiretamente, aos subsídios dos
Ministros do STF. Com isso, passaram a obter aumentos automáticos sempre que o
teto remuneratório fosse reajustado, como no presente caso. Repise-se: tudo
fruto do “jeitinho brasileiro”. Culpa do Judiciário? De maneira alguma.
Resultado do assédio de algumas categorias de agentes públicos ávidas por
reajustes automáticos antes restritos à magistratura.
Quanto ao imbróglio envolvendo o Programa Mais Médicos mantido com
Cuba, acredito que o fim do Convênio representa, antes de mais nada, o resgate
de um objetivo e de um Princípio perseguido pela República brasileira.
Logo na porta de entrada
de nossa Constituição está escrito: “a erradicação da marginalização é um dos
objetivos perseguidos pelo País” (inciso III, art. 3º). Mais adiante também se lê em letras garrafais:
“a prevalência dos direitos humanos rege o País em suas relações internacionais”
(inciso II, art. 4º). Bastam essas duas disposições para concluirmos que o
Convênio mantido com Cuba jogou no lixo tais dispositivos. E os valores
nacionais, onde é que ficam? Concordar com um confisco de 70% da remuneração
dos médicos contratados é reconhecer solenemente que nos tornamos companheiros
de um regime político que vai na contramão de nossos próprios princípios e
objetivos fundamentais. É reverenciar um País que nega valores tão caros ao
povo brasileiro. Negamo-nos a nós mesmos. Subtraímo-nos. Humilhamo-nos.
Aniquilamo-nos. Esse é o estado de coisas que estamos convivendo desde quando o
malfadado Convênio foi assinado.
Por fim ao Convênio não representa
apenas o término de um ajuste. Representa, antes de tudo, o resgate da Soberania
Nacional e a autoafirmação dos nossos próprios valores.
É como Voto.
Alipio
Reis Firmo Filho
Conselheiro
Substituto – TCE/AM
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