Páginas

sábado, 28 de setembro de 2019

A CORRUÇÃO NA SAÚDE PÚBLICA


Por Alipio Reis Firmo Filho (Artigo publicado na Coluna Gestão no Fato Amazônico)

A corrupção no setor público é abominável em todas as suas modalidades. Ela é como um potente ácido. Queima e consome tudo o que vê pela frente, deixando atrás de si um rastro de destruição. São choros, dores, sofrimentos e desesperos. Um oceano de lágrimas que jorra de corações oprimidos, costumeiramente esquecidos e abandonados.  Não há vida onde ela pisa. Não existe esperança onde ela toca. Mesmo aqueles que afirmam com ela conviver, mais cedo ou mais tarde, longe ou perto, acabam recebendo a paga por suas ações. Algumas vezes, da forma mais inusitada. Muitos nem se dão conta disso.   

Assim o é com a obra paga e não medida, com o produto comprado e não recebido, com o tributo injustamente dispensado e com a merenda escolar que não visita as creches e escolas. Tudo é tragado por um imenso redemoinho. Movido apenas pela força da ganância e do apetite de alguns.

Mas há uma forma de corrupção que considero a mais letal de todas. Nela, o choro é mais intenso, a dor é mais profunda, o sofrimento é inigualável e o desespero é infinitamente maior. Falo da corrupção na saúde. Talvez a forma mais mesquinha, leviana e infame de desviar dinheiro público.  
Enquanto qualquer outra forma de corrupção subtrai o alimento da mesa da coletividade, a corrupção na saúde lhe retira o que ela tem de mais precioso: A VIDA. Por isso ela é tão letal. Por isso ela mata incomparavelmente mais que todas as demais.

Se pudéssemos enxergar – como num grande telão - o rastro de sangue deixado pela corrupção no sistema público de saúde, talvez nosso sono nunca mais fosse o mesmo. Uma verdadeira carnificina. Algo semelhante aos campos de concentração da Alemanha nazista. Sem exagero algum.
-Quantas pessoas deixam de fazer suas cirurgias diariamente, o que lhes proporcionaria alívio na sua dor e no seu sofrimento, simplesmente  porque faltam materiais para realiza-las??? Já pensou nisso?
 -Quantos não batem às portas dos postos de saúde em busca da medicação desejada, que lhes permitiriam dormir melhor, comer melhor, falar melhor, pensar melhor, andar melhor, enfim, ter um mínimo de qualidade de vida, e são despedidos de mãos vazias quando lá chegam??? Já refletiu sobre isso?
- Quantos não deixam de fazer um exame clínico, capaz de identificar, instantaneamente, um mal, trata-lo a tempo e evitar seque-las, muitas vezes, irreversíveis??? Alguma vez você já se fez esse questionamento?

- Quantas crianças não morrem prematuramente, só pelo fato de as maternidades não disporem de condições, por falta de dinheiro, de lhes oferecerem um nascimento digno???

- Quantos acometidos por doenças crônicas (cardíacas, renais, hepáticas, oncológicas) morrem, todos os dias, em casa ou nos hospitais públicos, por absoluta falta de assistência do dinheiro público???

Mas, como disse, a corrupção na saúde pública é mais letal que todas as demais. Ela não mata apenas o paciente. Atinge, cruelmente, toda a sua família e amigos. O sofrimento é conjunto. A dor é coletiva. É como uma bomba de neutros. Mata silenciosamente e sem  alarde. 

Quantos sequelados não são produzidos diariamente só pelo fato de as farmácias públicas não disporem em seus estoques de remédios para o controle da pressão arterial ou dos níveis de açúcar no sangue?

Vivemos tempos sombrios, senhores. Na saúde pública, entretanto, as nuvens parecem ser bem mais escuras que as demais. Há morte por toda a parte e nós sequer nos damos conta disso. Como se nada tivéssemos a ver com isso.     

E quanto àqueles que produzem esse genocídio? O que fazer deles?  Aplicar as mesmas sanções que são aplicadas para outras situações? Tenho cá minhas dúvidas. Os especialistas na matéria penal afirmam que deve haver uma proporcionalidade entre o ilícito cometido e a sanção correspondente. Isso funciona direitinho na teoria, mas na prática...

As coisas são bem diferentes.

Há muito defendo que nossa Constituição “cidadã” já não é mais tão cidadã que outrora. Muitos dispositivos já foram revogados pela tábua de valores da sociedade brasileira. É grande a indignação coletiva. É imensa a sede por justiça. Muitos de seus dispositivos já não mais respondem aos anseios por justiça. Nesse ponto, estou com Maria Helena Diniz, ao admitir a existência das lacunas ontológicas e axiológicas, ambas refletindo o descompasso entre a (velha) norma jurídica e os valores sociais contemporâneos.

O atual texto constitucional, p. exemplo, impede a aplicação da pena perpétua no País. Trata-se de uma cláusula pétrea que é imune às mutações constitucionais via emendas. Na minha singela opinião, tal disposição já deveria ter sido objeto de reflexão, a fim de avaliar até que ponto o comando constitucional satisfaz os valores sociais mais sensíveis. A vida, certamente, está entre eles que, aliás, os encabeça.

Como tratar igualmente os (tipos) desiguais, desconsiderando-se a exata medida de suas desigualdades? Como ignorar os danos (imensos) gerados pela corrupção na área da saúde cujas consequências não se limitam a meras infrações de procedimentos ou locupletamento de recursos públicas, indo além, ceifando vidas e semeando dor e sofrimento à família e aos amigos do paciente? Nunca devemos nos esquecer: os efeitos da corrupção na saúde pública funcionam como EXTERNALIDADES. Suas consequências nocivas atravessam a órbita do seu destinatário (paciente, doente) e alcançam muitas outras pessoas que não participaram diretamente da relação poder público/paciente.

Para a reflexão de todos nós.


O PAÍS DOS INTOCÁVEIS



Por Alipio Reis Firmo Filho (Texto publicado na Coluna Gestão do Fato Amazônico)


As coisas pareciam ir tão bem e no rumo certo. Tudo de acordo com nossos anseios por justiça e  mudanças. Muitos “peixes graúdos” na cadeia. Gente que nunca imaginou estar atrás das grades agora amargava a experiência de ver o sol nascer quadrado, igual a qualquer ladrão de galinha. Pessoas que se colocavam acima do bem e do mal, de uma hora para outra, protagonizavam cenas que mais pareciam filmes de ficção científica. Realidades nunca antes imaginadas, de repente, eram estampadas nos meios de comunicação de todo o País. Grampos telefônicos revelavam a verdadeira face do crime, de como eram engendrados, tramados e costurados. Uma teia sem fim de interesses escusos, guardados a sete chaves, mas que a perspicácia de alguns teimou e conseguiu revelar.

Figurões que costumavam bater no peito como defensores árduos do fraco e do pobre. Políticos, empresários e administradores públicos influentes, agora eram identificados como os verdadeiros traidores da Pátria. Gente mesquinha. Gente ardilosa. Profissionais da mentira. Finalmente, parece que  as coisas haviam entrado nos eixos. Bastava manter o ritmo e... pronto. Tínhamos a esperança de chegarmos a sermos o País sério, ordeiro e disciplinado que qualquer cidadão do primeiro mundo estava acostumado a vivenciar.

Engano nosso. Triste engano.

Parece que acabamos de acordar de um grande sonho. Um sonho maravilhoso que há anos sonhávamos em sonhar. O tempo acaba de fechar e parece que as nuvens escuras tomaram conta de nosso céu de brigadeiro.

O cidadão de bem acaba de ser esfaqueado. Foram duas estocadas certeiras, profundas e com consequências incalculáveis.

No último dia 24/09 protagonizamos algo surrealista.    O bandido, o ladrão, o que assalta, o sanguinário, o que mata e o que rouba aplaudiram, de pé, a mais uma barbárie cometida contra o cidadão de bem.  A Câmara dos Deputados derrubou 18 dos 36 vetos presidenciais à recém aprovada lei de abuso de autoridade. Aliás, muitos juristas, magistrados, promotores de justiça e procuradores da República defendiam veementemente que a recente lei fosse vetada integralmente pelo presidente; tal era o teor de veneno que carregava em seus dispositivos. Infelizmente, isso não ocorreu. A solução presidencial foi retirar apenas 36 dispositivos do texto da lei. Tudo bem, pelo menos isso.

Sobre a aprovação da referida lei, estava mais para proteger bandidos do que salvaguardar direitos contra eventuais excessos. Na verdade, as organizações criminosas  não poderiam ficar de braços cruzados. Tinham que fazer algo para se defenderem de quem lhes ameaçava puxar o tapete. A solução veio por meio de um projeto de lei que pune juízes, procuradores e promotores por abuso no exercício de suas funções. Com a aprovação do texto quem decretar a prisão de bandidos que saqueiam os cofres públicos terá que ter suas cautelas. Poderá vir a responder por “abuso de autoridade” (imagine!!). Ou seja, na prática, colocaram uma arma nas mãos das milícias para atirarem sempre que se sentirem ameaçadas de largarem o osso. Algo bizarro, absurdo e descabido!!

Interessante notar que o texto da lei não prevê nenhuma punição contra aqueles que soltam graciosamente os gatunos, por meio de decisões desarrazoadas, tacanhas, sem pé e sem cabeça como, aliás, temos testemunhado diariamente nos meios de comunicação. Ou seja, incriminam quem prende e deixam de lado quem solta. Bela equação!! 

A segunda punhalada veio ontem, protagonizada pelo nosso Pretório Excelso. Reunidos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal praticamente bateram o martelo a favor da tese que pode anular 143 das 162 sentenças proferidas na Operação Lava-Jato. Pior: boa parte delas podem ser alcançadas pela prescrição já que os autos voltam ao estágio da instrução inicial. Ou seja, muitos tubarões podem ficar livres da cadeia apenas pela ação do tempo. Bingo!!

O entendimento firmado pelo STF foi no sentido de que o réu delatado deverá ser o último a falar no processo. Isso não ocorreu na maior parte das sentenças proferidas. Eu fico cá pensando: mas esses mesmos réus não tiveram a oportunidade de falar o que queriam nos infindáveis recursos que moveram logo após  a sentença condenatória? Não se trata de apenas uma filigrana jurídica?? E o Princípio da Instrumentalidade das Formas onde é que fica?? Será que, realmente, há necessidade de voltar no tempo e apagar o que já foi arduamente escrito?? E bota árduo nisso!! Foi difícil, muito difícil, colocar esse povo todo na cadeia!! Haja noites mal dormidas!! Haja desgaste emocional!! Haja criatividade para não cair nas armadilhas processuais e se desviar das brechas legais!!

Mas... manda quem pode!! Obedece quem tem juízo!!

Reescrevo aqui o que disse em minha rede social: "Sinais estão sendo dados. Basta interpretá-los. Ontem foi a derrubada dos vetos presidenciais; hoje uma decisão que fere de morte algo tão caro para a maioria dos brasileiros (a Operação Lava-Jato). Amanhã, o que será??? Algo está errado com a democracia brasileira ou, como prefiro, com a democracia à brasileira. Eu, sinceramente, gostaria que tivéssemos a força dos protestos de Hong Kong. No mínimo, este País deveria ser tomado por protestos nas ruas exigindo respeito das autoridades constituídas. Aliás, não há como respeitá-las. Roubar, matar e destruir continua valendo a pena neste País, com as bênçãos de quem carrega sobre os ombros o dever de lutar contra o mar de lama que tomou conta do setor público nacional.

Vigora no Brasil a ditadura do crime. Não, senhores, a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e, isto não é democracia. Foi para isso que lutamos tanto por liberdade de expressão??? Serve qualquer argumento??? Mesmo aquele que nos oprime, nos humilha e nos aniquila???

Como brasileiro, só me resta o luto"