Páginas

sábado, 3 de fevereiro de 2018

ESTÁGIO DA PREVISÃO DA RECEITA ORÇAMENTÁRIA: O QUE É?


Prever receitas orçamentárias significa tentar antever o volume de recursos que ingressará nos cofres públicos no exercício seguinte. A regra é a seguinte: se o orçamento se referir ao exercício de 2020, a previsão da receita deve ser realizada no exercício anterior, isto é, em 2019, ano em que será elaborada a proposta orçamentária para ser encaminhada ao legislativo (federal, estadual, distrital, municipal). A orientação é consequência do fato de em nosso País o período de vigência do orçamento público coincidir com o ano civil[1].   O ato de previsão não se mostra, assim, como uma tarefa fácil. É, antes de mais nada, atividade complexa e desafiadora, exigindo conhecimentos matemáticos, estatísticos e de conjuntura econômica, dentre outros. 

A Lei nº 4.320/64 fez referência a ele em seu art. 30, verbis:
a estimativa da receita terá por base as demonstrações[2] a que se refere o artigo anterior, a arrecadação dos três últimos exercícios, pelo menos, bem como as circunstâncias de ordem conjuntural e outras, que possam afetar a produtividade de cada fonte de receita.
O dispositivo assenta o ato de previsão da receita em duas bases: uma de natureza arrecadatória, relacionada ao volume de recursos arrecadados e uma segunda, de natureza circunstancial, em que deverão ser identificadas as variáveis que poderão concorrer para sua oscilação.

A respeito do volume dos recursos, o artigo determina que devem ser considerados não apenas o volume arrecadado no exercício em curso, mas também nos três últimos exercícios. A orientação visa primordialmente fazer com que o gestor possa ter elementos concretos acerca do nível arrecadado e se esse nível tem oscilado ao longo do tempo. Em caso afirmativo, deverá ser investigada qual foi a causa do movimento brusco, se ordinária ou extraordinária, isto é, se decorre de circunstâncias naturais ou não. Essa análise permitirá obter dados objetivos no tocante ao comportamento dos movimentos arrecadatórios que, por sua vez, serão muito úteis na projeção dos recursos a serem futuramente arrecadados.  As causas assim identificadas poderão ser, inclusive, de ordem conjuntural, consoante alude a parte final do dispositivo (inflação/deflação/preços estáveis, recessão/produção, câmbio estável/oscilante, política fiscal,  etc.) ou qualquer uma outra, considerada significativa e capaz de influenciar o ingresso dos recursos no futuro.     

Nesse contexto, a Lei Complementar nº 101/2000 conferiu mais concretude ao que  dispôs a Lei nº 4.320/64. Ela deu mais detalhes do que deve ser considerado no ato de prever receitas orçamentárias. Seu art. 12 determinou que as previsões da receita pública (i) observarão as normas técnicas e legais, (ii) considerarão os efeitos das alterações na legislação, da variação do índice de preços, do crescimento econômico ou de qualquer outro fator relevante e (iii) serão acompanhadas de demonstrativo de sua evolução nos últimos três anos, da projeção para os dois seguintes àquele a que se referem, e da metodologia de cálculo e premissas utilizadas.

Note que algumas variáveis não eram referidas explicitamente no corpo do texto da Lei nº 4.320/64, a exemplo do dever de observar as normas técnicas e legais ou do índice de preços. Assim, a nova disposição definiu melhor os procedimentos que deverão ser adotados pelo administrador público nessa importante fase da receita pública. Ele também inovou quanto à necessidade de projeção das receitas não apenas para o exercício em que vigorará a nova lei-de-meios, mas também para o imediatamente a seguir, computando, portanto, dois exercícios e não apenas um como até então era realizada.   

Por sua vez, o MCASP - 7ª Edição lembra que, no âmbito federal,

a metodologia de projeção de receitas orçamentárias busca assimilar o comportamento da arrecadação de determinada receita em exercícios anteriores, a fim de projetá-la para o período seguinte, com o auxílio de modelos estatísticos e matemáticos. A busca deste modelo dependerá do comportamento da série histórica de arrecadação e de informações fornecidas pelos órgãos orçamentários ou unidades arrecadadoras envolvidas no processo. A previsão de receitas é a etapa que antecede à fixação do montante de despesas que irão constar nas leis de orçamento, além de ser base para se estimar as necessidades de financiamento do governo.[3]

É evidente que a metodologia de previsão a ser utilizada dependerá da espécie de receita orçamentária que se pretende projetar, o que torna o processo de previsão da receita pública bem mais complexo. Dado o objetivo de nosso curso, não faremos maiores abordagens sobre o tema, ao mesmo tempo em que sugerimos ao leitor que, se desejar, aprofunde seus estudos a partir das fontes aqui referidas ou de outras julgadas pertinentes.

O estágio da previsão realiza-se por meio da publicação da lei orçamentária no órgão de imprensa oficial (diários oficiais). A publicação traz consigo dois efeitos: um jurídico e outro contábil que repercutirão, respectivamente, no mundo jurídico e no mundo contábil. Interessa-nos o último. Desta feita, no mundo contábil o ato será marcado por um  registro contábil correspondente, iniciando o processo de escrituração da receita orçamentária no setor governamental. A informação contabilizada será puramente de natureza orçamentária, movimentando contas das Classes 5 (Controles da Aprovação do Planejamento e Orçamento) e 6 Controles da Execução do Planejamento e Orçamento). Sinteticamente, esse estágio será marcado pelo seguinte registro contábil:

D- Previsão Inicial da Receita
C – Receita a Realizar  



[1] Art. 34 da Lei nº 4.320/64.
[2] As demonstrações às quais se refere o dispositivo correspondem às demonstrações mensais da receita arrecadada prevista no art. 29 do mesmo Diploma Legal.
[3] MCASP, p. 56.

NORMA-ORIGEM E NORMA-DERIVADA: O QUE É?



É sabido que o ordenamento jurídico corresponde ao conjunto das normas jurídicas (normas e princípios) de um país. Por outro lado, também é de conhecimento de todos que em seu interior as normas não estão dispostas ao acaso. Pelo contrário. O próprio ordenamento pressupõe a disposição de suas normas de maneira organizada, sistemática, daí, inclusive, o termo “ordenamento”, significando algo ordenado, isto é, disposto segundo uma ordem. Portanto, as normas que compõe um ordenamento jurídico não são dispostas a  esmo, de qualquer jeito. Elas seguem uma organização, uma disposição, de tal maneira que uma se compatibiliza com as demais formando um todo harmonizado.

Por sua vez, é imperioso destacar também que cada norma representa uma função no ordenamento jurídico. Não nos referimos propriamente à função de legislar sobre determinada matéria (direito financeiro, direito do trabalho, direito civil, etc.). Referimo-nos ao aspecto funcional mesmo de cada norma jurídica, isto é, à sua funcionalidade enquanto umas em relação às outras.  Nesse particular, ganha especial relevância a classificação das normas nos ordenamentos jurídicos e, dentro dessa classificação, merece acolhida a propositura do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Júnior[1], construída a partir de critérios gerais sintáticos, semânticos e pragmáticos. Dentre esses critérios, é oportuna a classificação normativa de natureza sintática por levar em conta a comparabilidade entre as normas, tendo em vista justamente a função que cada uma desempenha no ordenamento jurídico.

Na classificação normativa de natureza sintática existe aquela que classifica as normas do ordenamento jurídico levando em consideração o aspecto da subordinação  entre as normas. Nessa modalidade classificatória distinguem-se as normas-origem e as normas-derivadas. Conforme as respectivas nomenclaturas fazem referência, as primeiras são a base das últimas enquanto estas decorrem das primeiras. Há uma certa dependência entre as duas categorias de normas. Na verdade, segundo o Prof. Tércio Júnior, há uma relação hierárquica entre ambas: as normas-origem são superiores às normas-derivadas. Em consequência dessa hierarquização as normas-derivadas não podem contrariar sua norma-origem, sob pena de serem consideradas inválidas.

No embate entre o Direito Material e o Direito Processual essa forma de pensar o Direito é muito útil.

Já é pacífico na Doutrina o fato de o Direito Processual funcionar como instrumento do Direito Material. Em última análise, a norma processual realiza a norma material, fazendo-a valer, na prática. Na verdade, o que há entre ambos é uma relação de completude. A regra processual completa a regra material formando um todo harmônico. Nessa forma de pensar o Direito, conquanto sejam ramos distintos da Ciência Jurídica, não há como negar o caráter derivado do Direito Processual. Gonçalves Marcus Vinícius Rios[2] já disse uma vez que “Os esforços dedicados à conquista da autonomia do processo civil levaram ao surgimento da ciência processual, ramo independente do direito. Mas alguns institutos de direito processual só são compreensíveis quando examinados à luz da relação que deve haver entre o processo e o direito material. É o caso, por exemplo, da ação e de suas condições. É impossível examinar a legitimidade ad causam dos litigantes, sem referência ao direito material alegado (grifamos).

Recorramos ao Instituto da curatela para melhor Ilustrar o que foi dito.

O Código Civil prevê o Instituto nos incisos I e II de seu art. 1.728, reconhecendo o Direito. Por sua vez, o Código de Processo Civil dispõe sobre os limites em que o Instituto poderá ser usufruído e como isso se dará. É a hipótese da tutela provisória de urgência (inciso I, parágrafo único, do art. 9º) que a norma processualística impede que sofra a  incidência da regra contida na norma cabeça[3] do mesmo dispositivo.

Portanto, de acordo com a classificação proposta, o Direito Processual é essencialmente uma norma-derivada enquanto o conteúdo do Direito Material é marcado por características de uma norma-origem. É bem verdade, porém, que não há exclusividade dessas matizes em cada um dos ramos apontados. Em outras palavras, aqui ou ali iremos encontrar elementos no Direito Processual que são mais de índole material que propriamente processual. O inverso também é verdadeiro no tocante ao Direito Material. Conquanto não perca suas características de norma-origem, vez ou outra alberga, em seu interior, distintivos  próprios do Direito Processual. Eu diria que a questão é mais de prevalência – e não de exclusividade - de uns elementos sobre os outros.

Cada um dos ramos mencionados comporta o que a Doutrina Jurídica nominou de Institutos Jurídicos.  Segundo Paulo Nader[4], o Instituto Jurídico é a reunião de normas jurídicas afins, que rege um tipo de relação social ou interesse e que se identifica pelo fim que procura realizar. Ihering chamou-os de corpos jurídicos, para distingui-los de simples matéria jurídica. Exemplo de Institutos Jurídicos no Direito Material seriam o “casamento”, “a posse”, “a falência” e o “domicílio”. Já “mandado de segurança” e “prisão provisória” são Institutos Jurídicos notadamente encontrados nas normas processuais. Nesse sentido, também os recursos previstos na norma processual seriam Institutos Jurídicos (apelação, agravo de instrumento, agravo interno, embargos de declaração, recurso ordinário, recurso especial, recurso extraordinário, agravo em recurso especial ou extraordinário e embargos de divergência). Essa acepção está rigorosamente de acordo com a concepção proposta por Paulo Nader uma vez que os recursos (i) reúnem normas jurídicas afins (o capítulo que trata dos recursos nos códigos e nas leis ocupam compartimentos específicos dentro das normas onde são regulados); (ii) regem um tipo de relação social ou interesse (a relação se põe entre órgão julgador – que procura aplicar a norma jurídica/reapreciar a matéria já julgada  – e o recorrente) e (iii) que se identifica pelo fim que procura realizar (rediscussão e revisão da matéria já julgada). As “simples matérias jurídicas” referidas por Ihering dizem respeito, essencialmente, à operacionalidade dos Institutos Jurídicos. Elas, por assim dizer, colocam os Institutos em movimento, realizando-os no mundo jurídico. Ocupam, portanto, a parte periférica das relações jurídicas – conquanto não menos importante -, à maneira de satélites que orbitam em torno de um corpo celeste. Numa palavra: as matérias jurídicas adjetivam os institutos. É como se fossem normas-sujeito (os institutos) e normas-predicado (as matérias).      

É forçoso concluir, portanto, que há uma relação de dependência entre as matérias e os Institutos Jurídicos. Com efeito, não é razoável pensarmos em Institutos dissociados de suas respectivas matérias; e nem de matérias separadas de seus institutos. Ou seja, um depende do outro. Há também aqui, como outrora apontado na relação dos Direitos Material e Processual, uma relação de completude.  



[1] Professor Titular da Faculdade de Direito da USP.
[2] In Direito processual civil esquematizado-São Paulo: Saraiva,2011, p. 37.
[3] Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
[4] In Introdução ao Estudo do Direito”, Rio de Janeiro: Forense, 1998, 16ª ed., p. 100.